Um fenômeno atinge a literatura brasileira há alguns anos. Ao olhar as prateleiras das livrarias, logo se percebe que o drama urbano do eixo Rio-São Paulo-Porto Alegre entrou em xeque e vem dando lugar a uma coleção de histórias passadas em cidades pequenas do interior, zonas rurais, terras indígenas e rincões desse país real chamado genericamente de Brasil profundo.
São vários os exemplos de romances que optam por essa geografia, lançados por editoras grandes e pequenas, mas com algo em comum —todos se relacionam de alguma maneira com o fenômeno "Torto Arado", o romance multipremiado de Itamar Vieira Junior que se tornou o maior sucesso editorial brasileiro dos últimos tempos.
Já ouço vozes gritando que o interior sempre apareceu na literatura brasileira. E "Os Sertões"? E "Vidas Secas"? E "Grande Sertão: Veredas"? E "Capitães da Areia"? E "Fogo Morto"? E, e, e, e ?
A questão aqui não é a existência ou não dessas narrativas, mas a proporcionalidade entre os lançamentos recentes e o fato de editoras sempre tentarem reproduzir o sucesso do momento para surfar numa nova onda de vendas. Livros sobre magia e bruxaria também sempre existiram, mas todos lembramos a enxurrada que aconteceu após a explosão de "Harry Potter", não é?
Só que o assunto deste texto não é exatamente esse. O fato é que obras que trazem à tona a nossa cultura popular, regiões diversas do país e cenários que privilegiam as matas em vez do concreto também se multiplicam nas publicações para crianças e jovens.
Confira a seguir cinco opções que se afastam das metrópoles e passeiam por interiores, terras indígenas, festas populares e o nosso folclore —e, mesmo quando exibem as cidades, apresentam pontos de vista completamente diferentes.
Baticum e o Tambor Real
Aqui também encontramos a realeza —desta vez, Baticum, uma princesa que herdou uma coleção de tambores ancestrais. A história é inspirada num conto popular chamado "Couro de Piolho", recolhido pelo pesquisador e folclorista Câmara Cascudo. Nele, a princesa aceita se casar, mas decide que só ficará noiva do pretendente que descobrir de qual couro é feito o seu tambor favorito. A resposta, é claro, está no divertido título original. Nesta adaptação, as autoras apresentam Zé Bocó, que mora lá nos Cafundó e empreende uma jornada cheia de desafios sertanejos para conquistar a mão da princesa. Figura boba e astuta, mistura de João Grilo com Chicó, Zé Bocó usa os mistérios do interior para alcançar o casório.
Fogo, Gente!
O escritor Cristino Wapichana e a ilustradora Graça Lima voltam a trabalhar juntos após o premiado "A Boca da Noite", de 2016. Neste novo livro, eles dão continuidade à série iniciada no ano passado com "Chuva, Gente!" e mergulham na relação do povo wapichana com o fogo. Mais uma vez, o que conduz a história é a conversa da menina protagonista com sua avó, que fala a conta-gotas —ou brasa a brasa— sobre a importância e a imprevisibilidade das chamas. Com a calma e a cadência que geralmente aparecem em texto de autores indígenas, Wapichana apresenta um fogo que é "formado por luzes espirituais do universo". Tudo ganha mais densidade com as cores vibrantes e os traços incendiários de Graça Lima.
O Diário de Kaxi
Outra parceria de autor indígena e ilustradora premiada, o livro de Daniel Munduruku e Ciça Fittipaldi é um diário ficcional em que o garoto Kaxi narra a sua viagem rumo à cidade, longe da aldeia, do outro lado do rio Tapajós. Mas ele vai meio a contragosto, por motivos de saúde. "O que eu sei de verdade é como subir na mangueira, no açaizeiro. O que eu gosto de fazer é andar à toa pela mata e brincar de caçar, pescar e nadar no rio", diz o personagem. O caminho é cruzado por barcos, aviões, casas cheias de luzes e prédios que lembram as caixas para colocar mandioca ralada. As reflexões e descobertas de Kaxi são embaladas pelas ilustrações de Fittipaldi, que vai mudando a paleta de cores do livro. À medida que a metrópole chega, as páginas vão ficando cada vez menos verdes."
O Pássaro Azul
Maria é como se fosse a Cinderela —vive com uma madrasta e duas irmãs invejosas, que morrem de ciúme quando descobrem que ela recebe visitas de um pássaro mágico que é capaz de falar. Como em "O Rei Sapo ou o Henrique de Ferro", conto clássico dos irmãos Grimm no qual um príncipe é amaldiçoado e ganha a forma desse anfíbio, a ave do livro é um membro da realeza trancado sob as penas azuis. Aliás, ele é ilustrado de um jeito bem brasileiro, como se fosse uma arara-azul-grande, espécie que toma os céus do Pantanal. Como em todo bom faz de conta, a personagem e o pássaro se desentendem e se desencontram, o que empurra a menina rumo a uma longa jornada mágica até o "felizes para sempre".
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