Ao entrar no Sesc Bom Retiro, na região central de São Paulo, somos recebidos por cinco estandartes coloridos, cada um com três andares de altura, tomando todo o vão central do prédio. Presos ao teto, eles exibem a palavra "karingana" como se fosse um grito.
Na cultura oral moçambicana, esse termo faz parte das contações de histórias da língua ronga. Funciona mais ou menos como o "era uma vez" dos contos de fadas tradicionais, mas na forma de um jogo entre quem conta e quem escuta. Antes de dar início à narrativa, o contador diz "karingana ua karingana". Quando a plateia responde "karingana", a performance começa.
É assim também que damos os primeiros passos na nova exposição "Karingana", que recebe o público a partir de sábado, dia 15, na unidade do Sesc. O nome não é aleatório. Com o subtítulo "Presenças Negras no Livro para as Infâncias", a mostra reúne 92 obras de 47 ilustradores, todos negros. As artes foram publicadas originalmente em livros ilustrados e infantojuvenis lançados no Brasil.
"A ilustração já é pouco valorizada dentro do mercado editorial. O ilustrador negro é invisibilizado dentro dessa invisibilidade", diz a pesquisadora Ananda Luz, uma das curadoras. "Quisemos mostrar toda a diversidade dessa produção. E fazer com que a criança negra possa se enxergar em diferentes possibilidades de existência durante a visita."
A frase de Luz ganha eco num dos nortes da exibição. Na conversa com a reportagem durante a montagem, a curadora desfilou conceitos como ancestralidade, territorialidade, coletividade, oralidade, religiosidade, musicalidade, mas é na diversidade que brota a potência da visita.
Diversidade que não está ligada apenas à questão racial. "É, sim, uma mostra que fala de racismo. Mas são ilustrações que exibem, sobretudo, crianças negras existindo. A gente quer que os visitantes vejam a beleza nos corpos negros. Queremos falar de existência, não só de resistência", afirma Luz.
Instalada num espaço acanhado, numa das laterais do segundo andar onde geralmente ocorrem as exposições do Sesc, "Karingana" faz um equilíbrio difícil em poucos metros quadrados.
A atração exibe nomes que despontam na cena contemporânea, como Carol Fernandes, Rodrigo Andrade, Aline Bispo e Larissa de Souza, mas também coloca entre molduras artistas pioneiros, casos de Zeka Cintra e Josias Marinho. Isso sem falar no espectro de editoras de cujos livros saíram as artes exibidas —gigantes como Pequena Zahar e Melhoramentos convivem com casas independentes como Caixote, Kitembo e Mazza e projetos como o Lendo Mulheres Negras e a revista África e Africanidades.
Mas a exibição não cria uma multiplicidade aleatória ou gratuita. Se é possível dizer que o Brasil vive há anos uma primavera da ilustração de livros para a infância, com artistas reconhecidos e premiados internacionalmente, o recorte da mostra permite olhar com atenção algumas revoluções comandadas por profissionais negros na estética, na narrativa e na potência do livro ilustrado publicado hoje no país.
As 92 obras expostas são majoritariamente reproduções, com exceção de seis delas, exibidas nos originais. Apesar de estarem nas paredes, distantes do livro e do suporte para o qual foram originalmente pensadas, as ilustrações não perdem totalmente o contato com a literatura.
Do outro lado do andar fica o espaço de leitura, visto de forma livre e aberta por causa do vão central do prédio. Ali, títulos que contêm os desenhos exibidos em "Karingana" estão disponíveis para leitura.
"Quero que editoras sem autores e ilustradores negros no catálogo visitem a exposição, reflitam sobre isso e decidam chamar esses artistas para ilustrar seus lançamentos, porque gostaram dos trabalhos e acharam importante levar essas perspectivas para seus livros", diz Luz. "Não é possível ter um novo 'Abecê da Liberdade'", acrescenta ela, em referência ao livro infantil de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta que foi acusado de racismo e retirado de circulação em 2021 pela Companhia das Letras (leia mais aqui).
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