Se Alceu Valença canta que "a solidão é fera, a solidão devora", como descrever esse sentimento quando o solitário é uma criança?
Embora muitos insistam em idealizar a infância como um período solar e recheado de positividade, todos sabemos que nem sempre é assim. E, para tomar emprestado outro clássico da música brasileira, desta vez de Caetano Veloso, muitas vezes "a tristeza é senhora" —e, vez ou outra, ela surge justamente da solidão.
Nessas horas, uma companhia pode ser a literatura. Não apenas como uma relação afetiva de mergulho em diferentes histórias, mas também porque alguns livros infantis e ilustrados falam sobre o tema e jogam luz sobre personagens que não têm companhia. É claro que a arte não tem essa função didática, mas ela pode ajudar a despertar reflexões e a criar provocações no leitor criança.
De maneiras diferentes, isso é o que fazem os cinco títulos abaixo. Há os que concordam com Caetano e dialogam com a tristeza. Outros preferem a saída da imaginação e dos sonhos. Tem ainda os que usam brincadeiras para falar da solidão, que nem sempre é uma coisa ruim.
Conheça as obras abaixo.
O Aquário de Pedro
Pedro passa horas sozinho em seu quarto. Deita sobre o tapete, desenha em folhas de papel, mexe no tablet, brinca no computador, joga-se na cama de ponta-cabeça e, principalmente, interage com Dourado, seu peixe de estimação, que vive num aquário ali mesmo. Tudo aparece ilustrado com traços de lápis de cor, feitos pelo ilustrador Gabriel Pessoto. A solidão e o tédio fazem com que Pedro transfira seus sentimentos para o peixe, o que o faz colocar alguns de seus brinquedos dentro do aquário, para que o bicho não se sinta tão sozinho. Quando percebe que isso não resolve a situação, decide adquirir outro animal para ser amigo de Dourado. É assim que o rapaz ganha as ferramentas para sair do próprio aquário onde vive.
Balas Mágicas
"Eu brinco sozinho. Brincar sozinho não é tão ruim". É desse jeito que começa "Balas Mágicas", primeiro livro da sul-coreana Heena Baek publicado no Brasil. Nele, um menino se isola porque gosta de bolinhas de gude, mas as outras crianças só pensam em jogar bola. Um dia, quando vai comprar bolinhas novas, descobre que elas também são balas. Ao colocá-las na boca, um estranho poder surge: o garoto passa a ouvir vozes antes inaudíveis. O sofá tagarela, o cachorro desabafa, o coração rígido do pai se confessa e até a avó morta sussurra. Ao sair do seu isolamento e se abrir para outras falas, ele não apenas abre os ouvidos, mas também amplia o seu olhar. E, de alguma forma, percebe que "é impossível ser feliz sozinho", como diria Tom Jobim.
Boa Noite, Yolanda
Depois de uma volta de carro com o pai, a menina Yolanda do título fica sozinha em seu quarto, observa a Lua da janela e dá início a uma jornada pelo mundo dos sonhos e do fantástico. Nós, leitores, não sabemos muito bem os motivos dessa ausência, mas desvendamos aos poucos que a mãe da personagem não vive mais com ela. É justamente essa mãe que surge inesperadamente na janela e leva Yolanda para um passeio. Juntas, de mãos dadas, as duas desbravam as matas, ouvem os sons da floresta e dançam perto da Lua. De forma delicada, a narrativa é costurada pela saudade e pela certeza de que, mesmo que certas pessoas não estejam mais aqui, de alguma forma elas sempre estarão.
Tanta Chuva no Céu
Lançada em 2020, esta é a obra mais antiga da lista e uma das mais interessantes dos últimos anos para falar de tristeza e solidão. Na história, uma menina acorda sozinha, numa casa vazia, sem qualquer som —a não ser o dos sentimentos que aos poucos percebemos retumbar dentro dela. A mãe não está mais lá e já não lê seus livros com os pés apoiados na mesinha. O pai também está ausente e não pede que ela vista as meias. Quando um barulho surge lá fora, não é o do carro dos pais, pois "esse ela sabia que não ouviria mais". Numa trama densa, repleta de chuvas, choros, cicatrizes e costuras, o autor, Volnei Canônica, usa um tom poético para falar da dor da perda e dos primeiros passos rumo à reconstrução.
EM TEMPO...
As músicas citadas neste texto:
"Solidão", de Alceu Valença
"Desde que o Samba É Samba", de Caetano Veloso
"Wave", de Tom Jobim
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.