"Penso que às vezes a literatura é como uma biblioteca infinita, e dessa biblioteca cada indivíduo só pode ler algumas páginas. Talvez nelas esteja o essencial."
A frase do escritor argentino Jorge Luis Borges talvez seja a definição mais interessante e exata da nossa relação com os livros e sobre a nossa incapacidade de ler tudo aquilo que desejamos. Mas se a vida é curta, a infância é um sopro.
É impossível ler antes de crescer todas as histórias clássicas, todas as versões dos contos de fadas, todos os livros ilustrados mais arrebatadores e todos os melhores títulos de todos os tempos da última semana que foram indicados pela imprensa ou nas redes sociais.
A boa notícia é que alguns livros ajudam nessa viagem e criam certos atalhos no meio da biblioteca infinita. E dois deles acabaram de ser lançados.
"Perguntas Inquietas", da espanhola Beatriz Martín Vidal foi publicado pela Pulo do Gato e talvez seja o lançamento mais bonito dos últimos tempos. A escritora e ilustradora se inspira nos contos de fadas para criar imagens que são ao mesmo tempo realistas e sonhadoras. Nelas, surgem princesas, madrastas e personagens para lá de conhecidas, como Branca de Neve e Rapunzel.
A estrutura se repete do início ao fim do livro. Como é possível perceber já no título, tudo começa com um questionamento, sempre ligado aos famosos contos tradicionais. Mas, mais do que inquietas, o que lemos são perguntas infinitas.
O que a Bela Adormecida sonhou? Por que João e Maria voltaram para casa, mesmo tendo sido abandonados? Rapunzel sentiu alívio quando se viu livre da trança? O que Chapeuzinho Vermelho aprendeu no instante em que estava na barriga do Lobo?
Com essas provocações ainda em mente, viramos a página e encontramos uma ilustração que não responde exatamente à pergunta feita, mas que vai mais adiante —o desenho, com ares de pintura, dialoga, subverte e aumenta as interpretações possíveis.
A obra é um convite para mergulharmos mais profundamente nessas histórias que caminham há séculos ao nosso lado, desde muito antes de nomes como irmãos Grimm ou Charles Perrault as colocarem no papel e criarem as suas próprias versões. Mas é também um estímulo para conhecer contos que não ficaram tão conhecidos ou que não ganharam versões da Disney.
É o caso de "O Pequeno Polegar", personagem que é capturado ao lado dos irmãos por um ogro, que decide devorá-los. Astuto, ele consegue enganar o monstro, que acaba comendo as próprias filhas. Mas será que Polegar terá sentido algum arrependimento? Essa é a pergunta infinita de "Perguntas Inquietas".
Outro livro que serve de atalho para desbravar novas histórias é "O que Mamãe Não Sabe…", de Rodrigo Andrade. Lançado pela Caixote, o título opta por outro caminho, mais o da celebração do que o da provocação.
Nele, conhecemos Bento, um menino que fica sozinho em casa quando a mãe sai para trabalhar. Sozinho entre aspas, na verdade, porque uma série de personagens passam a visitá-lo. A cada virada de página, uma nova visita se apresenta. O que na superfície é uma ode à imaginação, no fundo se torna uma bela homenagem à literatura.
Cada dupla ilustrada faz referência a um clássico. No início, Bento se transforma em Mogli, cercado pela pantera Bagheera e pelo tigre Shere Khan, de "Os Livros da Selva". Surgem ainda os gênios de "As Mil e Uma Noites", de Sherazade, também o Pequeno Príncipe e seu planetinha, além do Capitão Gancho e do temível crocodilo de "Peter Pan".
Mas há piscadelas para outros clássicos, como "Onde Vivem os Monstros", de Maurice Sendak, e "A Vida Não Me Assusta", de Maya Angelou e Basquiat. Do lado brasileiro, saltam nomes como Ziraldo, Roger Mello, Eva Furnari, Odilon Moraes e artistas ainda mais contemporâneos, casos de Janaína Tokitaka e Kiusam de Oliveira, por exemplo.
Apesar da festa e da estrutura parecida a "Onde Está Wally?", o livro acrescenta camadas sociais, econômicas e raciais à narrativa. Bento e os pais são negros, a mãe precisa deixar o filho sozinho para conseguir trabalhar e a porta da casa se abre para um rascunho de bairro de periferia, com fios elétricos soltos, vasos com plantinhas pelos cantos e escadarias típicas dos morros.
Só que a imaginação e a arte se impõem sobre a realidade. Isso não apenas por causa da fantasia de Bento, mas também por causa do único objeto que é ilustrado com uma cor diferente da paleta de azul e branco que domina a edição.
Quando o pai do personagem chega em casa, ele segura um livro vermelho. O impacto visual faz o objeto gritar no fim da história. E serve de convite para mais leituras, mais perguntas, mais contos, mais personagens, mais livros —que nunca serão totalmente lidos, porque são infinitos, como já dizia Borges.
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