Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero

'Kimbi' cria viagem psicodélica por uma Angola urbana e ancestral

Com visual pop e lisérgico, livro coloca no liquidificador as Áfricas do kuduro, das aldeias, do futebol e das florestas

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Um semáforo de trânsito reluz com as três luzes amarelas. Pichações nos muros. Cabelos com dreads, turbantes estampados, calças coloridas. Placas alertam para animais na pista. Casas com telhados de palha, baobás ancestrais. Tênis All Star frente a frente a pés descalços. Tudo com cores gritantes. Rosa-choque. Laranja-radioativo. Azul-césio-137.

É essa atmosfera psicodélica que brota das páginas de "Kimbi e a Magia da Floresta". Escrito pelo angolano Fernando Carlos e ilustrado pelo brasileiro Kel, o livro infantojuvenil mais do que usa um visual pop e lisérgico para apresentar os dois contos que formam o título. Ele une o que há de mais urbano em Angola a uma África ancestral e coloca tudo no liquidificador. O kuduro se mescla às matas, o futebol é jogado em aldeias e carros dividem páginas com animais falantes.

Ilustração de Kel para "Kimbi e a Magia da Floresta"
Ilustração de Kel para "Kimbi e a Magia da Floresta", da Edições Barbatana - Divulgação

Mas vamos começar do início. "Kimbi", o primeiro texto, apresenta dois irmãos angolanos: Yala e Wime. Ambos estão prestes a visitar pela primeira vez a aldeia Nzoji, no interior, onde mora o avô deles.

Numa viagem de carro com toques de road trip, surgem pássaros, grilos, árvores velhas e palavras distantes do português brasileiro, como cubata (tipo de choupana) e palanca (nome para diferentes antílopes). Mas é na chegada que os irmãos conhecem aquele que dá força ao conto —Kimbi, um menino "semelhante a um pássaro livre", conhecido por todas as árvores e todos os animais.

Esse choque entre a Angola cosmopolita e a cultura tradicional do país forma o encontro entre os irmãos da cidade e o garoto da aldeia. Yala e Wime ensinam Kimbi a jogar futebol e a dançar kuduro, o famoso ritmo angolano. Em troca, o rapazinho apresenta os bichos e as danças folclóricas. Até que Wime acaba batucando o kuduro no casco de um cágado.

Mas os encontros culturais ganham ainda mais contornos nas ilustrações de Kel. Do outro lado do Atlântico, o artista brasileiro une o pop à tradição e faz do livro um caleidoscópio. Os desenhos abusam de cores vibrantes e apresentam mais ou menos as mesmas formas, mas sem nunca serem iguais. As personagens, por exemplo, nem sempre apresentam os mesmos rostos. A cada virar de página, os elementos são embaralhados e algo novo surge. Algo inédito, mas familiar ao mesmo tempo.

Já o segundo conto é "A Magia da Floresta", em que animais falantes precisam reconstruir a mata onde vivem, após a destruição de uma tempestade. O plano não é só fazer um restauro físico, com novas árvores e rios, mas fundar uma nova forma de sociedade. Ou, como discursa a formiga, o desejo é criar uma floresta baseada na união e no amor ao próximo.

Ilustração de Kel para "Kimbi e a Magia da Floresta"
Página dupla que abre o segundo conto da obra - Divulgação

O texto ressoa com menos potência do que o anterior justamente pela falta de choque ou de conflito interno. Os animais buscam se contrapor à sociedade capitalista, utilitarista, predatória e cruel. Mas fazem isso com a mais perfeita harmonia do primeiro ao último parágrafo.

Os bichos decidem refazer a floresta em comum acordo, o Leão clama que o Veado tem razão, todos se molham nas águas da amizade, o Macaco dorme com a Zebra, a Cadela se casa com o Gato e assim por diante, numa revolução dos bichos que abusa de tons didáticos e mensagens moralizantes.

Ilustração de Kel para "Kimbi e a Magia da Floresta"
Ilustração de Kel para "Kimbi e a Magia da Floresta", de Fernando Carlos - Divulgação

Mas, se o texto anda em círculos, as ilustrações se aproveitam desse vácuo. As imagens crescem ainda mais ao mostrar um antílope com terceiro olho, cogumelos brilhantes, mandalas aborígenes e toda uma psicodelia visual.

Isso faz com que a sensação ao terminar o livro seja parecida com a dos animais no casamento entre a Cadela e o Gato, que fecha o conto. Já no fim da festa, todos surgem embriagados por causa do maruvo, bebida tradicional angolana feita da seiva fermentada de plantas. A desorientação chega ao ponto de o Veado declarar amor à Pacaça (um bovino), pensando que ela fosse a Palanca.

Assim como as personagens, nós, leitores, também acabamos um pouco "maruvados" ao chegar às últimas páginas, sem saber exatamente onde acaba Luanda, começa a floresta e surge o Brasil —e, no fim, isso pouco importa.

Kimbi e a Magia da Floresta

  • Preço R$ 67 (64 págs.)
  • Autoria Fernando Carlos e Kel
  • Editora Edições Barbatana

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