Frederico Vasconcelos

Interesse Público

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Descrição de chapéu Folhajus

Ziraldo ouviu procuradores que queriam 'botar o país nos eixos'

Quarteto analisou casos de corrupção em entrevista à revista satírica 'Bundas'

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São Paulo

Os procuradores da República Luiz Francisco Fernandes de Souza, Ana Lúcia Amaral, Rogério Nascimento e Raquel Branquinho "têm um objetivo em comum: botar este país nos eixos". Eles "lutam para ver condenados os grandes corruptos."

Quem afirmou isso foi o cartunista Ziraldo Alves Pinto na edição de 29 de agosto de 2000 da revista "Bundas", que ele criara um ano antes.

Era uma sátira da revista "Caras", que expunha as celebridades. À jornalista Cynara Menezes, na Folha, Ziraldo sugeriu um dos slogans: "Quem mostrou a bunda em ‘Caras’ não mostrará a cara em ‘Bundas’".

A proposta era lançar um novo "Pasquim", maior jornal alternativo dos anos 1970.

Cynara previu que uma das principais vítimas seria o governo, sobretudo o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Revista de Ziraldo entrevistou procuradores membros do Ministério Público Federal
O cartunista Ziraldo e os procuradores da República Raquel Branquinho, Rogério Nascimento, Luiz Francisco de Souza e Ana Lúcia Amaral, entrevistados pela revista 'Bundas', em 29.ago.2000 - Ricardo Borges/Folhapress e Arquivo pessoal

FHC nomeara Geraldo Brindeiro procurador-geral da República contra a vontade da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República). Brindeiro ficaria conhecido como "engavetador-geral da República".

O objetivo da entrevista não foi fazer sátira ou humor. Os membros do Ministério Público Federal tinham experiência na investigação e denúncia de graves irregularidades.

Só vim a ler a entrevista dias depois da morte de Ziraldo, no último sábado (6). Acompanhei vários casos mencionados pelos procuradores.

"De um modo geral, a população nem sabe que a gente existe, ou o que a gente faz", disse então Ana Lúcia.

Talvez o mais conhecido à época fosse Luiz Francisco, atualmente procurador regional da República da 1ª Região.

Ele investigara no Acre o coronel da PM e ex-deputado Hildebrando Pascoal, acusado de amputar, com uma motosserra, braços, pernas e pênis de um mecânico, além de perfurar os olhos e cravar um prego na testa.

A ex-PGR Raquel Dodge também foi responsável pela condenação de Hildebrando Pascoal.

Tropa de choque impactada

Ziraldo perguntou aos entrevistados o que mais escandalizava cada um.

"É ver bilhões e bilhões de reais irem para o ralo de forma ilícita", respondeu Luiz Francisco.

"O sistema de privatização é o maior escândalo do Brasil (...) uma perda que, a meu ver, vai ser insuperável para as próximas gerações", disse Raquel.

Ela coordenou a área criminal e as investigações da Lava Jato na gestão da PGR Raquel Dodge. Foi coordenadora do Núcleo Criminal da Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro.

A procuradora investigou o superfaturamento na construção da sede do Superior Tribunal de Justiça, que beneficiou a empreiteira OAS.

A convite do atual PGR, Paulo Gustavo Gonet Branco, Raquel assumiu a diretoria-geral da Escola Superior do Ministério Público da União.

"O que me causa mais repugnância é juiz ganhando dinheiro para soltar traficante, acertando com perito criminal para dar indenizações bilionárias", disse Ana Lúcia.

Ela foi uma das procuradoras da Operação Anaconda, que desmantelou uma quadrilha que negociava decisões judiciais na Justiça Federal em São Paulo.

Ana Lúcia obteve a devolução de R$ 114 milhões aos cofres públicos com a suspensão da desapropriação de um prédio usado pelo TRF-3, em São Paulo.

Um falso engenheiro foi condenado por superavaliar o imóvel. Evitou-se um prejuízo semelhante ao desvio de recursos do Fórum Trabalhista de São Paulo, que levou à condenação do juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto [Lalau], do ex-senador Luiz Estevão de Oliveira e de empresários.

"O caso do Banco Nacional me escandalizou: o quinto maior banco do Brasil, com mais de um milhão de depositantes, há dez anos quebrado em US$ 10 bilhões, sem que o Banco Central se desse conta disso", afirmou Rogério.

Dois anos antes da entrevista, a Folha confirmara o envolvimento nas fraudes de ex-funcionários da KPMG, firma de auditoria externa do Nacional, reforçando as suspeitas de conivência com a auditoria interna.

Raquel lembrou outro escândalo, o caso Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Nacional). "Foram destinados bilhões e bilhões para as instituições financeiras se sanearem e passarem esse dinheiro para o exterior".

"O BC que deveria ser um órgão controlador, fiscalizador das instituições, acaba sendo um representante delas", comentou a procuradora.

"Em 1990, eu fiquei um tempinho em Porto Velho. O que tinha de agência de banco estrangeiro era impressionante", disse Ana Lúcia.

AGU na berlinda

A entrevista tratou também do então Advogado-Geral da União, Gilmar Ferreira Mendes, atual decano do Supremo Tribunal Federal.

Ana Lúcia disse que Gilmar foi "o grande cérebro" das Medidas Provisórias. "Se tem uma ação judicial contra o governo, insere-se uma Medida Provisória para restringir o poder dessa agência", comentou Raquel.

"Se o Gilmar fosse mais brilhante eu diria que ele é uma espécie de Fausto, o gênio do mal. Mas até para isso falta um certo brilho para chegar lá", disse Rogério.

Luiz Francisco disse que interessava ao governo tanto recurso "porque, assim, tem o controle da cúpula do Judiciário. (…) A cada dia tenta solapar a independência dos juízes de primeira instância, daí ele critica a questão do poder cautelar dos juízes".

O procurador disse que "o petulante" Gilmar foi o "padrinho" da Lei da Mordaça".

"O governo precisa da Lei da Mordaça para controlar a primeira instância. Para controlar os [juízes] concursados, não os nomeados", disse Ana Lúcia.

"A mordaça tem outro alvo que é a própria imprensa. A imprensa ganhou uma força nova, investigativa e também deve ser calada. Quando você cerceia a fonte, está cerceando o trabalho do jornalista", disse Luiz Francisco.

Anos depois, o procurador questionaria 451 contratos firmados sem licitação na AGU, então comandada por Gilmar Mendes. Subordinados da AGU fizeram cursos, à custa do erário, no IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público), do qual Gilmar é sócio-fundador.

Em 2007, o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) aplicou pena de suspensão de 45 dias a Luiz Francisco, por acusar Eduardo Jorge Caldas Pereira, ex-secretário da Presidência da República, "de desvio de verbas do TRT paulista", de tráfico de influência e de "hipotético 'caixa 2 da campanha eleitoral de FHC".

Reportagem da Folha confirmou que o MPF não conseguiu comprovar as acusações.

Avaliações à distância

Procuradora aposentada da PRR-3, Ana Lúcia Amaral avalia a entrevista, 24 anos depois:

"Acho que é um retrato do Ministério Público Federal à época. Hoje, nem simulacro. Eram tempos de FHC. Mudou o grupo hegemônico e nada melhorou. Ou eram as mesmas coisas?

Eu ingenuamente acreditei que o direito sairia da senzala para a casa grande. Ledo engano. Como as coisas pioraram, apesar de tudo.

Confesso que fiquei incomodada com a constatação de tão grande retrocesso."

Eis a opinião de Rogério Nascimento, que atua na PRR-1:

"Guardo com muito orgulho e satisfação a memória da ocasião. Enxergar a importância do Ministério Público naquele momento não era óbvio e a conversa um pouco caótica com mais de uma dezena entre entrevistados e entrevistadores foi leve e séria. Rindo se expõe costumes.

Havia em comum entre todos ali uma vontade sincera de trabalhar para um país mais justo."

(*) Participaram da entrevista Ziraldo, Luís Pimentel, Caco Xavier, Miguel Paiva, Arthur Poerner, Zezé Sack, Emir Sader e Heloneida Studart.

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