Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
Descrição de chapéu Todas ansiedade

Festas de fim de ano podem virar um pesadelo

Hoje respondo aos convites com um 'não, obrigada'; agradeço o ano maravilhoso e digo que não poderei comparecer

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Essa época do ano é terrível para mim. É muita correria, promessas de tempos melhores no ano que chega, confraternizações para todos os lados regadas a muita bebida, luzinhas, roupas vermelhas, Papais Noéis. Parece que todo mundo entra num modo felicidade-a-qualquer-custo (às vezes muito caro) e isso sempre me entristeceu. E muito.

É esquisito: vira novembro, chega a felicidade para todos com brilhos, festas, viagens. Sempre me pego pensando: ninguém fica triste como eu? NIN-GUÉM? Uma das características do meu alcoolismo é a ansiedade. Ver todo mundo nessa corrida frenética não me faz nada bem.

Desde pequena me sinto assim. Tenho um vídeo em Super 8 de uma festa de Natal. Eu tinha nove anos e chorava muito, agarrada às pernas de minha mãe. O mais maluco era que ela estava dizendo umas palavras bonitas para os presentes. Na gravação, fica clara a antítese: a mãe agradecendo as bênçãos e a filha chorando com cara de pavor e angústia.

Lembro perfeitamente daquele dia. Eu não conseguia interagir, tinha a sensação de que não podia respirar e achava que estava derretendo, sumindo, morrendo. Aquilo era um ataque de pânico, hoje eu sei, mas naquela noite tão feliz que cantaríamos todos juntos em coral noite-feliz-noite-feliz-ó-senhor-deus-de-amor-pobrezinho-nasceu-em-Belém, eu só queria que todas aquelas pessoas fossem embora para que eu pudesse deitar. Que eu não precisasse estar arrumada. Não queria ver a chegada de Papai Noel nenhum, não queria presente.

Natal vegetariano
'Amigos, fiquem firmes nessa época do ano. É difícil para caramba passar ileso' - Adobe Stock

Isso era um tapa na cara dos festeiros: ELA É ESTRANHA, O QUE TÁ ACONTECENDO? Acho que aquele ano em que passei muito mal me fez ter a certeza de que novembro é como uma panela de pressão. A princípio está ok, daí começa a fervilhar, e são convites, o trânsito, a corrida para os presentinhos, os compromissos, os brindes, as mil confraternizações e BUUUM, explode no dia da festa. Comemorar é, com raríssimas exceções, brindar e beber. Ou será que sou muito exagerada? Vejo pelas confraternizações a que já fui: todas têm o álcool como convidado principal. Menos aquelas dentro de clínicas de reabilitação...

Mas queria contar que depois que entrei nos Alcoólicos Anônimos venho olhando o lado bom da vida e tento não embarcar nessa toada. A primeira vez que entrei numa sala de AA era fim de outubro. Se já me sentia destruída e sem vontade de viver, aquela época do ano poderia piorar ainda mais o meu estado. Comecei a falar sobre isso. Lembro em especial de uma senhora do grupo. Quando comecei a choramingar é-fim-do-ano-eu-não-fiz-nada, e continuei não-tenho-planos-para-nada, ela imediatamente me abraçou: Menina, daqui para frente é um dia de cada vez. Só por hoje. E aquilo bateu na minha cabeça como um alívio. E ela ainda emendou: Você, a partir de agora, não tem que nada. Entendeu?

Meu Deus, era a libertação, eu finalmente poderia dizer não, poderia não querer ir a festas, a encontros tóxicos (como se fala hoje em dia). Não só as palavras, mas o abraço daquela senhora foram arrebatadores. E a partir de diálogos como este, de pessoas que sentem ou passaram pela mesma aflição, medo e tristeza, tudo foi ficando mais fácil, sobretudo nessa época do ano. Não estou sozinha nessa. Soube então a resposta para a questão lá do primeiro parágrafo.

Hoje respondo aos convites: não, obrigada, agradeço o ano maravilhoso que passamos juntos, mas não poderei comparecer. Bem simpática e assertiva. E isso mudou minha vida. Não tenho que estar presente em mais nada. Não tenho que entrar num ritmo frenético, posso me ouvir e saber o que é melhor para mim. Não preciso ver TO-DO-MUN-DO da família que não vejo o ano inteiro. Por mais que muitas vezes eu faça papel de chata, sempre lembro daquela senhora e das milhares de pessoas que estão em grupos de apoio para atravessar esse caos de fim de ano. Preciso pensar em mim. Os grupos de apoio, nesse período, se intensificam. Existem maratonas de Natal e Ano-Novo justamente para que ninguém viva nada sozinho. Essa força brutal do grupo faz toda diferença.

Ainda quero falar mais desse período aqui no blog. Mas hoje olho para aquela Alice pequena no vídeo e tento reconhecê-la em alguma criança por aí. É difícil à beça chegar ao mundo e se sentir inadequada. Viver não é nada fácil e não chegamos com um manual de instrução. Principalmente em relação aos sentimentos. Isso não dá para ensinar de jeito nenhum. Tenho certeza de que é preciso ajuda, escuta, diálogo desde criança para tentar amenizar, em especial nos mais sensíveis, a dor de crescer.

Então, nos meus dias pesados: não fico sozinha na angústia, falo mais sobre meus sentimentos e evito ao máximo o que me incomoda. Amigos, fiquem firmes nessa época do ano. É difícil para caramba passar ileso, ainda mais se a pessoa é alcoólatra. Mas é bem possível. Faz alguns anos que passo em paz. Obrigada a vocês pela companhia até aqui e podem me escrever, caso aperte por aí. Tenho muito interesse em estar junto de quem experimenta a mesma dor.

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