Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Me senti em uma versão latina de 'Corra!' enquanto trançava meu cabelo

Em Buenos Aires, entendi errado o preço que o homem cobrava e só consegui pagar as tranças de metade da cabeça

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Bruno Ribeiro

Escritor, tradutor e roteirista, autor de "Porco de Raça"

Fiquei olhando para o espelho do banheiro, me perguntando: "Tem negro em Buenos Aires?". Nessa noite, o que me atormentava não era a questão racial na cidade, mas a vontade de voltar a usar tranças.

Veio a grande questão: brancos também fazem tranças, mas você confiaria em um branco fazendo tranças? Ok, racismo reverso pega mal, mas eu realmente gostaria de uma pessoa negra fazendo tranças em mim e foi com esse espírito que botei uma roupa e saí na noite fria do bairro de San Telmo.

Fui até a plaza Dorrego: nenhum sinal de alguém que pudesse me ajudar. Tomei uma cerveja no bar Britânico e aguardei algum sinal. Terminei e fui andando pela área, me perdendo pelas vielas amareladas, me deixando levar de um lado para o outro, até que em um beco estreito vi uma enorme porta azul e um homem negro. Ele tinha tranças.

Ao vê-lo, imaginei estar diante de um milagre. Cheguei perto do cara e, em espanhol, perguntei se ele conhecia alguém que fazia tranças. Ele me encarou de um jeito meio "quem é esse cara que não me conhece e vem em um dia de semana, às 8h da noite, perguntar quem faz trança?".

Por uma coincidência surreal, ele disse que dentro da casa tinha um brother que fazia. Ele entrou. Eu jurava que o homem negro voltaria com outro dos nossos, mas ele me apareceu com um cara baixinho e branco.

"Trança, amigo?", ele perguntou.

"Isso! Você é brasileiro?", eu disse.

Ele começa a tocar no meu black power e responde: "Não, sou daqui, mas minha esposa é de São Paulo. Moramos muitos anos lá".

"Seu português é bom", afirmei.

"O seu também", ele respondeu.

Fiquei sem entender a sua resposta. Depois da análise capilar, ele diz: "20 pesos dá pra fazer".

"Aqui mesmo?", questionei.

"Não, na minha casa", ele indicou.

Fomos até a casa dele. Era em um prédio em ruínas. Subimos alguns degraus de escada até chegarmos em uma porta pichada. Ele bateu na porta e uma mulher tatuadíssima, com olheiras enormes, abriu. Ele a beijou, disse que ia trançar meu cabelo, ela ficou incomodada.

Eu imaginei que entraria em um apartamento, mas era um quarto pequeno. A cama tomava metade do espaço. Pôsteres de bandas de rock e filmes alternativos nas paredes. No meio do caos, uma televisão ligada no YouTube, rolando vídeos de skatistas fazendo manobras. Um banheiro. Em cima da cama, uma criança brincando e gritando com ódio. Ela devia ter uns cinco anos. Me senti em uma versão latina e falida de "Corra!".

O cara fuçou no guarda-roupas e pegou os objetos para trançar o meu cabelo. Puxou uma cadeira do banheiro, botou na frente da televisão e me convidou pra sentar. Sentei. Ele foi trançando. Fio por fio. Aparentava ser habilidoso com as mãos.

Fui conversando com eles sobre as diferenças da Argentina e do Brasil ao som de um punk e da criança berrando. A única luz do local vinha da televisão, o que criava um tom soturno no cubículo. Falamos de músicas. Eles contaram da vida deles, de como é foda viver de arte. O cara estava na metade do meu cabelo. Eu perguntei se, apesar dos pesares, o trabalho com as tranças dava uma grana.

"Cara", ele responde, "no domingo, que a turistada tá lá na Defensa, até rola… Brasileiro nem faz tanto, mas os europeus se amarram. Eles acham muito barato".

"O preço tá ótimo", assenti.

"Quem dera todo brasileiro fosse como você", ele diz. A mulher faz uma careta pra ele. "É verdade! 20 pesos por trança é uma merreca."

Epifania. Volto para onde ele falou "20 pesos dá para fazer". As mãos do baixinho continuam trançando e só consigo pensar "putz, mais 20 pesos para a conta". Na minha cabeça eletrizada, entendi que ele trançaria o meu cabelo inteiro por 20 pesos, não que cada trança seria 20 pesos. Agora tudo faz sentido e dialoga melhor com a economia local. Ele fazia mais uma trança. Menos 20.

"Que engraçado...", sussurrei. Nessa época eu estava fodido. No bolso eu tinha uns cem pesos. "Velho, preciso te contar um negócio... É um negócio bem engraçado!", prossegui. Ninguém ria. Até a criança parou de sorrir e gritar. Só a televisão gemia. "Entendi errado", falei.

"Como assim?", ele questionou.

"Eu entendi que as tranças no cabelo inteiro seriam 20 pesos".

Vi na hora a cara de decepção da mulher. Algo como "mais um doido que você traz para casa, zero novidades". Eu disse que não teria aquela grana ali comigo, mas eu poderia ir em casa pegar e deixaria para trançar o resto depois.

O baixinho foi de boa e até riu da situação. Ele começou a contar a quantidade de tranças que tinha feito. Não lembro o número exato, mas deu algo em torno de trezentos pesos. Ele não me deixou ir sozinho para casa. Deu uma risadinha, mas ficou desconfiado. Me despedi da sua mulher e fomos embora.

O meu cabelo estava metade trançado e foi assim que saímos de lá. Todos na rua me olhando e segurando a risada. Chegamos em casa, e pedi para ele esperar do lado de fora. Entrei, e o amigo que vivia comigo havia chegado, me olhou e começou a rir. Expliquei a situação. Nem dinheiro eu tinha em casa; sorte que ele tinha e me emprestou. Saí, paguei o cara, disse que voltaria depois para finalizar. Ele sabia que eu nunca mais voltaria. E não voltei mesmo.

Em casa, me olhei no espelho do banheiro: um homem com um pé no passado trançado e no presente enrolado. "Tá vendo, idiota, da próxima vez é para achar uma pessoa negra mesmo pra trançar esse cabelo", pensei em voz alta enquanto passava a máquina zero.

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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