Instituições resistiram ao 8/1, mas cenário ainda gera preocupações

Desconfiança entre Poderes, sentimento antipolítica e polarização são vistos por especialistas como riscos para estabilidade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

No alto do carro de som, a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) pedia desculpa porque estava "um pouco emocionada". Uma mão segurava o microfone, e a outra se entrelaçava na da viúva do comerciante Cleriston Pereira da Cunha. Réu dos ataques golpistas de 8 de janeiro, ele havia morrido uma semana antes, no dia 20 de novembro, no Complexo Penitenciário da Papuda (DF).

Embaixo, manifestantes de verde e amarelo ocupavam as duas pistas da avenida Paulista, por um quarteirão e meio. Zambelli dizia que eles cobrariam justiça e não se intimidariam: "Essa Paulista está cheia de novo!".

0
Manifestação na Paulista após morte de Cleriston Pereira, réu dos ataques golpistas de 8 de janeiro - Jardiel Carvalho - 26.nov.2023/Folhapress

A adesão não chegou perto da dos protestos que tomaram o país após as eleições de 2022, insuflados pelas mentiras que o então presidente Jair Bolsonaro (PL) havia espalhado sobre o sistema eleitoral.

Ainda assim, era um sinal de que os bolsonaristas ensaiavam uma volta às ruas depois de um ano de desmobilização —em meio à derrota, às férias de Bolsonaro nos Estados Unidos e à inelegibilidade do ex-mandatário, a base tinha ficado desorientada.

Desorientada, mas ainda convicta. Naquele domingo, impulsionados pela morte de Cleriston, vítima de um mal súbito durante um banho de sol no presídio, os manifestantes atacavam o STF (Supremo Tribunal Federal) e pediam o impeachment do ministro Alexandre de Moraes.

"Alexandre de Moraes, o seu tempo está chegando, e você vai pagar pela morte deste inocente!", disse o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), do alto do carro de som. A crítica ao STF segue como uma das principais pautas mobilizadoras do grupo —a desconfiança nas instituições foi um dos fatores que levou à eleição de Bolsonaro.

Há um ano, protegido pela separação dos Poderes, pela fragmentação partidária e pelo federalismo, o Brasil resistia à ruptura democrática. Mas isso não significa que a democracia esteja totalmente recuperada, segundo especialistas consultados pela Folha.

"Se os elementos do bolsonarismo continuam lá e não são trabalhados pelo campo democrático, então não só os radicais, como os mais moderados, estão sempre vulneráveis a esse tipo de gatilho", afirma a socióloga Esther Solano, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Ou seja, se as questões que resultaram na ascensão de um líder antidemocrático como Bolsonaro não forem resolvidas e acabarem varridas para debaixo do tapete, outra figura semelhante poderá novamente capitalizar em cima delas.

"A minha preocupação é que, no futuro, essa extrema-direita se reorganize e a gente não esteja capacitado para enfrentá-la, porque não fizemos o dever de casa", afirma.

Solano diz que o sentimento antipolítica, que dá liga para candidatos como Bolsonaro, que se vendem para o eleitor como "outsiders", segue forte no país —mesmo entre os eleitores moderados do ex-presidente. O mesmo acontece com as críticas à atuação do STF, outro ponto sensível.

Ela também cita a segurança pública como um dos temas que não está sendo tratado adequadamente pelo governo Lula, e que pode voltar a ser explorado por um líder com pretensões autoritárias.

A socióloga afirma ainda ter percebido nas suas pesquisas que o eleitor moderado enxergou o 8 de janeiro como um ato de vandalismo, mas não como uma real ameaça à democracia. "Pouca gente de fato entendeu que o dia 8 foi uma tentativa de golpe e que a democracia estava em risco. Foi muito mais percebido pelo lado do exagero, do vandalismo, da depredação, da violência."

Ela tem receio de que a sociedade, especialmente a juventude, passe a normalizar episódios do tipo e não entenda a importância de proteger valores democráticos.

"É uma juventude que viu um presidente fazer coisas que nós talvez não imaginaríamos nunca, que viu pessoas entrando no palácio presidencial tentando dar um golpe. São símbolos que a juventude viu, presenciou e entendeu que eram possíveis. Me preocupa muito", diz.

Essa normalização poderia abrir espaço para líderes antidemocráticos, especialmente aqueles que não são abertamente golpistas, ela afirma. "Esses líderes estão pipocando no mundo todo. Eles chegam ao poder mediante o processo democrático, das urnas, e talvez não proponham o golpe de uma forma tradicional, militar, mas são profundamente disruptivos para a democracia."

O mais recente embate entre o Supremo e o Senado, que em novembro aprovou a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que limita as decisões individuais dos ministros da corte, também indica fragilidades na relação entre as instituições.

Professor da Universidade de Oklahoma e pesquisador de temas como a crise das democracias, Fábio de Sá e Silva diz que os três Poderes continuam buscando um ponto de equilíbrio e que há desconfiança entre eles.

0
Parlamentares da oposição comemoram a aprovação da PEC que limita as decisões individuais de ministros do STF - Pedro Ladeira - 22.nov.2023/Folhapress

"As instituições estão desfiguradas. Hoje a gente tem o Executivo muito refém do Legislativo. As indicações ao Supremo e à PGR [Procuradoria-Geral da República] também mostram que a Presidência passou a olhar para esses órgãos para conseguir organizar sua governança, o que não deixa de ser uma distorção. Não foi para isso que eles foram desenhados na Constituição", afirma.

Para Sá e Silva, a sociedade também mostra sinais negativos para a democracia. Um deles é a continuidade do compartilhamento de informações falsas nas redes sociais. Outro é a polarização política tóxica.

Cientistas políticos costumam concordar que alguma polarização é positiva para a sociedade, mas níveis muito altos foram associados ao declínio democrático em uma série de países. Quando uma pessoa enxerga o adversário não como um oponente político, mas como um inimigo, uma ameaça à nação ou a valores fundamentais, ela fica mais propensa a aceitar práticas antidemocráticas para eliminá-lo.

Os desafios do presidencialismo de coalizão também colocam a democracia brasileira em risco, afirma o autor do termo, o sociólogo Sérgio Abranches.

A dificuldade em unir bancadas e formar maiorias em um sistema tão fragmentado acabou blindando o país contra os avanços mais autoritários de Bolsonaro, como a PEC do voto impresso, mas pode, ao mesmo tempo, ser um problema. Isso porque a ameaça à governabilidade é também uma ameaça à democracia, na visão de Abranches.

"Toda vez que você tem instabilidade na governança e dificuldades na implantação de políticas públicas que satisfaçam necessidades básicas da população, a legitimidade da democracia fica ameaçada. Nós estamos em um momento global de ameaça às democracias porque elas não estão funcionando bem", diz. "Essa crise global de desencanto democrático tem a ver com a baixa capacidade de governabilidade e a baixa eficácia das políticas públicas."

Esse é um padrão observado em todo o mundo –se a democracia não consegue garantir direitos básicos para as pessoas, elas ficam mais dispostas a apoiar líderes autoritários que prometem soluções simples para problemas complexos.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.