Nos anos 1990, a aparição de Dona Olinda era um alívio na Redação da Folha. Repórteres, redatores e editores levantavam a cabeça do zigue-zague torturante das palavras e pediam um café, coado há pouco e mantido quente na garrafa térmica. A senhorinha, de idade indefinida, atendia a cada um, empurrando calmamente seu carrinho, onde ainda havia bolos e doces.
O café tem basicamente duas funções num jornal: serve de combustível para as rotativas na cabeça do jornalista e também como desculpa para a procrastinação —ou socialização, nome mais ameno.
Escrever e procrastinar são os verbos contrários que formam o jornalista. Um não existe sem o outro, pois é na tensão do tempo afunilado que o texto se faz. (Em crônica famosa, Rubem Braga dizia que o cafezinho serve até para adiar o destino.)
A descoberta do café como estimulante se deu na Etiópia, quando um pastor percebeu que seus carneiros ficavam pulando feito loucos ao comer daquela frutinha, que séculos depois seria símbolo de São Paulo.
A história se repetiu de maneira bem mais glamorosa no Soho, em Londres, em meados dos anos 1980. Exausta, uma futura supermodel (a lenda diz que era Naomi Campbell) entrou no bar de Dick Bradsel e pediu a ele um coquetel que a deixasse ao mesmo tempo ligada e bebinha.
Olhando para a máquina de café ao lado, Bradsel teve a ideia de misturar espresso, licor de café e, como era moda na época, vodca. A mistura acabou sendo chamada, mais tarde, de espresso martini e virou item obrigatório para descolados, modelos, artistas, cineastas e… jornalistas londrinos.
Três estrelas
É o coquetel perfeito para celebrar os cem anos da Folha. Por vários motivos. Seus três ingredientes básicos evocam as três estrelas que despontam no alto da primeira página. Elas representam a Folha da Noite (criada em 1921), a Folha da Manhã (1925) e a Folha da Tarde (1949). Da fusão desses jornais, em 1960, surgiu, propriamente, a Folha de S.Paulo.
O grão estimulante também aparece na figura do segundo dono da Folha, Octaviano Alves de Lima, um fazendeiro e comerciante de café. Era neófito naquele universo, mas ajudou a recolocar o jornal de pé, depois que a Revolução de 1930 destruiu suas instalações —a Folha era anti-getulista ferrenha.
Inventado na mesma época em que a Folha vivia um de seus melhores momentos —se não o melhor—, quando da campanha pelas Diretas Já e do Projeto Folha, o simples e objetivo espresso martini ainda traz em si elementos, digamos, de aproximação poética com o fazer jornalístico.
A diversidade, por exemplo, é uma marca do coquetel. Nele, a vodca russa e polonesa convive com o café de origem árabe e africana. O espresso quente é o outro lado que dialoga com a vodca gelada. O primeiro pode sugerir as hard news, notícias que saem direto do forno para o leitor. A segunda estaria mais relacionada à opinião, à análise, à reportagem longa.
O café é tão visceralmente ligado à Redação, que hoje há quem tenha a própria máquina de espresso na mesa —ou em casa, em home-office. Poucos aderem ao café da "máquina de laboratório", como chamam aquela em que se põe uma moedinha e cai um copo de plástico para receber um jato de tinta. Alguns, com suas devidas máscaras protetoras, descem ao pátio onde há um "coffee truck" e tomam café em outras variantes, até com tônica.
Nesses momentos, em que a preciosa rubiácea une as pessoas, o que inclui colaboradores e entrevistados, conversas podem virar notícia. E notícias são os rascunhos da história, como diz a personagem de Meryl Streep em "The Post".
Um brinde, pois, a todos os que fizeram e fazem "rascunhos da História" na Folha. Um brinde, também, a todos seus leitores.
Cent'anni!
ESPRESSO MARTINI
Ingredientes
- 30 ml de vodca
- 30 ml de licor de café
- 30 ml de espresso
Passo a passo
Bata (bastante, para fazer espuma) os três ingredientes com gelo numa coqueteleira e coe para uma taça coupe previamente gelada. Enfeite com três grãos de café.
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