Gelo e gim

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O novo 'Macbeth' mantém o humor etílico do original de Shakespeare

Dramaturgo britânico sem humor é como coquetel sem álcool: não faz muito sentido

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As batidas no portão do castelo ressoam de um jeito agourento e sinistro, mas o espírito do porteiro está mais para a galhofa. "Quem é, em nome de Belzebu!" Ao atender, ele explica aos cavaleiros que ficou na farra até tarde. Emenda com uma reflexão sobre os efeitos do álcool: "nariz vermelho, sono e vontade de fazer xixi."

Antes de abrir as travas para o inferno de "Macbeth", Shakespeare se permite esse momento cômico. O contraste gritante abre espaço para os gritos de horror. Ignorando o assassinato do rei, o ressacado porteiro continua sua preleção, uma obra-prima do humor etílico:

"Quanto à luxúria, a bebida incita-a e reprime-a ao mesmo tempo: provoca o desejo, mas impede-lhe a execução. Por isso se pode dizer que a bebida em demasia é um verdadeiro logro para a luxúria, pois suscita-a e frustra-a, persuade-a e desanima-a, arma-a e desarma-a."

Denzel Washington em cena do filme "A Tragédia de Macbeth", de Joel Coen
Denzel Washington em cena do filme "A Tragédia de Macbeth", de Joel Coen - Divulgação

Na versão dirigida por Joel Cohen, indicada a três Oscar (ator, fotografia e cenário), a graça se perde em meio à frieza expressionista das longas escadas e paredes nuas. Sob a direção de Polanski, a mesma piada tem o calor escatológico que merece, ainda que o resto do filme seja inferior.

Curiosamente, tanto Orson Welles quanto Kurosawa, ao filmarem "Macbeth", cortaram a fala do porteiro, que ressoa na infertilidade do casal assassino. Supérflua ou fora de lugar, devem ter pensado. Concentraram-se nas sombras mais nítidas do texto.

Se o diretor japonês fez, com "Trono Manchado de Sangue", a mais intensa leitura da peça, a adaptação com Michael Fassbender e Marion Cotillard (2015) demorou-se demais em narcísicas cenas em câmera lenta. Também ignorou a divertida aula do porteiro. Nem caberia.

A verdade é que Shakespeare sem humor é como coquetel sem álcool: não faz muito sentido. O bardo era inseparável da comédia, como "a mocidade da luxúria". E era moderno antes da letra ao entremear digressões nas tramas.

Como todos na era elizabetana, ele bebia com gosto, ainda que moderado. Uma caneca de ale (a cerveja antes do lúpulo) ou de vinho importado era mais segura do que uma jarra de água do poço, costumeiramente contaminada. Até as crianças se hidratavam com cerveja. A rainha tomava religiosamente poções de alto teor alcoólico. Havia cerca de uma taverna para cada 180 habitantes na Inglaterra.

O termo bar foi criado lá mesmo, em meados do século 16. Era o lugar em que nobres, prostitutas e pessoas do povo se reuniam, com direitos iguais de opinião —e de briga, invariavelmente sangrenta.

Shakespeare costumava encontrar-se com Ben Jonson e Christopher Marlowe num pub para pôr a dramaturgia em dia. Talvez cruzassem com Falstaff, criação mais viva do bardo —tão viva que de fato poderia estar ali, em (muita) carne e osso.

São inúmeras as falas dele sobre a alegria de viver nos bares da vida, na leve devassidão das noites, longe das pompas e circunstâncias da corte. Sobre a honra, por exemplo, diz que "não passa de um escudo na porta dos defuntos" ("Henrique IV").

"Tonel humano", tinha também sua filosofia de taverna: "Se eu tivesse mil filhos, eu os ensinaria a evitar bebidas sem graça". Resta dizer, como o próprio em sua bravata fanfarrona: "desterrai o gorducho Falstaff e tereis desterrado o mundo inteiro!"

​BYRRH & BEER (variação de receita de Simon Difford)

Ingredientes

  • 60 ml de british bitter ale (IPA serve)
  • 30 ml de Byrrh (na falta, Dubonnet ou vermute doce)

Passo a passo
Misture tudo num copo com gelo. Decore com uma casca de laranja.

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