Britânicos conservadores e fundamentalistas islâmicos torceram com veemência o nariz quando a rainha Elizabeth 2ª concedeu a Salman Rushdie a honraria de sir, em 2007. A condecoração a um escritor polêmico nascido em Mumbai era potencialmente explosiva e no mínimo irônica.
Não é segredo que a Grã-Bretanha foi bastante cruel com suas antigas colônias, a Índia inclusa. Rushdie, humanista de esquerda, não era, portanto, um entusiasta da monarquia, símbolo do imperialismo. Isso devia se estender à mãe de Charles, o novo rei, por mais afável que ela fosse —e por mais que dividissem o gosto por uma bebidinha ou duas (ou quatro, no caso da venerável falecida, que não vivia sem seu Dubonnet Cocktail).
Num texto de 1982, no início da Era Thatcher, chamado "Um novo império dentro da Grã-Bretanha", o autor de "Versos Satânicos" denunciou o racismo institucional na Inglaterra. Mal interpretado à época, ele foi acusado de comparar o país à Alemanha nazista. Fato é que jamaicanos, indianos, paquistaneses e judeus sofriam ataques de grupos fascistas, muitas vezes com a polícia desviando os olhos.
Lúcido e certeiro, Rushdie citou discursos pró-supremacia branca da dama de ferro, Thatcher, e definiu: "um dos conceitos básicos do imperialismo é considerar que a superioridade militar implica em superioridade cultural, o que permitiu aos britânicos reprimir culturas muito mais antigas que a sua."
Essa sabedoria ancestral, tão atacada pelo preconceito, está espelhada nos olhos miúdos e sagazes do escritor, que vem de uma família muçulmana secularista.
Pude constatar isso pessoalmente, numa tarde de sol carioca, em 2005, quando circunstâncias afortunadas me levaram a almoçar com ele no bairro de Santa Teresa. A vista do alto era magnífica e o céu auspicioso. Não vi ninguém de terno preto e óculos escuros por perto. Ele queria conhecer o Brasil sem os entraves da segurança. A força da fatwa decretada pelo aiatolá Khomeini em 1989 tinha diminuído e parecia uma contradição diante da exuberância tropical.
Ele pediu uma caipirinha de vodca, com outra fruta que não o limão. Eu fui de cachaça e limão. E disse que ele estava cometendo um grande erro. Rimos e a conversa foi parar nas regras do beisebol, que ele tentou me explicar, sem sucesso. Falamos também de Machado de Assis, um de seus heróis literários.
Liz Calder, uma das fundadoras da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, é sua amiga há muitos anos. Deve tê-lo convencido a tomar caipirinha com pinga em Paraty. Ela foi a editora daquele que é considerado seu melhor livro, "Os Filhos da Meia-Noite".
Logo no começo, aparece o personagem de um barqueiro com apenas dois dentes de ouro na boca e várias mulheres e filhos nas margens do rio. Figura folclórica, um "Calibã das águas", ele é devoto da "aguardente barata de Caxemira". Como seria essa aguardente?
No fogo cruzado de "imperialistas cor-de-rosa" e fanáticos religiosos, o bem-humorado sir Salman se recupera de um ataque brutal. O brinde é para ele, com a lembrança de uma tarde incrível e ingredientes da sua terra.
Rum Masala Chai
- Seis grãos de pimenta do reino
- Meia colher de chá de gengibre em pó
- Uma pitada de noz moscada
- Três cravos-da-índia
- Duas ramas de canela
- Meia colher de sopa de açúcar mascavo
- 360 ml de água
- 120 ml de leite
- Dois saquinhos de chá preto
- Rum a gosto
Passo a passo
Coloque os ingredientes, menos o chá, em uma panela com fogo médio. Quando ferver, desligue o fogo, acrescente o chá e tampe a panela por cinco minutos. Coe para um copo e acrescente o rum. Decore com uma estrela de anis.
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