Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu Folhajus

O Judiciário após as eleições

Impõe-se que o Judiciário passe a escutar mais a sociedade, sobretudo as parcelas historicamente silenciadas

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André Augusto Salvador Bezerra

Juiz de direito em São Paulo e professor. Integrante e ex-presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Mestre, doutor e pesquisador no pós-doutorado de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo (USP)

Há uma fala generalizada de que, nos últimos anos, a democracia brasileira tem atravessado seu teste de fogo. Ofensivas contra minorias, desprezo a questões ambientais e criminalização seletiva de inimigos políticos são discursos e práticas correntes que, aos poucos, parecem minar o projeto democrático baseado em liberdade, justiça e solidariedade, presente no artigo 3º, inciso I, da Constituição.

O Judiciário também passou a ser alvo desse processo destrutivo. Decisões de cortes superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ensejaram fortes ataques contra o Sistema de Justiça, realizados em discursos de lideranças extremistas ou pela divulgação de fake news.

Tais ataques não atingem apenas o teor do decidido judicialmente. Alcançam ainda a pessoa dos julgadores, tidos como inimigos de uma suposta moralidade religiosa e de um peculiar conceito de liberdade armada.

O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, fala ao microfone
O TSE, presidido por Alexandre de Moraes, foi criticado por Jair Bolsonaro, que colocou em dúvida a lisura das urnas eletrônicas - Evaristo de Sá - 30.out.22/AFP

O mais trágico de tudo isso é que, de modo geral, as ofensivas contra o Judiciário decorrem de suas virtudes. Foi o que ocorreu, por exemplo, durante a pandemia, quando o STF se limitou a reconhecer a autonomia dos Estados na aplicação de políticas que enfrentassem a Covid-19. Apesar de o tribunal nada mais ter feito senão lembrar que o Brasil é uma Federação, a decisão serviu de subterfúgio para alguns imputarem à pessoa de julgadores a culpa pelas centenas de milhares de mortes pela doença que, segundo estudos científicos, poderiam ter sido evitadas caso medidas nacionais complementassem as práticas locais, como a aquisição rápida de vacinas.

Não é demais lembrar que, no período eleitoral que acabamos de atravessar, a situação ficou ainda mais tensa. O TSE se tornou o foco prioritário de discursos intolerantes, tendo seus membros sido, muitas vezes, tratados como verdadeiros adversários políticos de candidatos.

Novamente, a maior tragédia residiu no fato de o extremismo tornar defeito as virtudes do Judiciário. Recordemos do caso das ofensivas contra a votação pelas urnas eletrônicas, até então consideradas um motivo de orgulho da Justiça Eleitoral brasileira por garantirem uma apuração rápida e segura.

Passada agora a tormenta do segundo turno do processo eleitoral, o Judiciário não apenas sobrevive como também mostra sinais de não ter saído combalido da violência sofrida.

Na realidade, parece até mais fortalecido. De fato, conseguiu realizar suas funções mesmo com toda a pressão contrária vinda de uma chuva de acusações destituídas de qualquer racionalidade. Basta imaginarmos o que seriam das eleições de 2022 sem a Justiça Eleitoral.

Essa circunstância, contudo, não significa que o sistema judicial não tenha o que aprender com a tensão a que foi submetido. Muito do absurdo conspiratório a seu respeito no qual se acreditou (e se acredita) advém do desconhecimento sobre seu funcionamento: quais são as verdadeiras funções dos juízes? Quais suas possibilidades e limites? Como se inserem no Estado brasileiro?

Para que toda sociedade conheça as respostas corretas a questões como essas, livrando-se de teorias conspiratórias, é que o Judiciário, por intermédio de seus tribunais espalhados pelo país, deve adotar novas formas de governança que o abra mais à população. Precisa abrir-se para falar e para escutar.

Falar claramente à sociedade que juízes não são agentes políticos que se servem de suas atribuições para projetos eleitorais; que devem ser equidistantes dos conflitos que apreciam para não serem confundidos com boxeadores que duelam contra uma das partes dos processos; ou, ainda, que embora alguns deveres que lhes são impostos incluam despachar com advogados e membros do Ministério Público, isso não implica que possam combinar estratégias processuais com estes. Enfim, que as funções que exercem se relacionam ao tratamento igualitário dos litigantes, possibilitando que as decisões proferidas estejam em real conformidade ao projeto constitucional de justiça social, ainda que desagradem interesses políticos, midiáticos e econômicos de ocasião.

De outro lado, impõe-se que o Judiciário passe a escutar mais a sociedade, sobretudo as parcelas historicamente silenciadas, como as mulheres periféricas discriminadas no mercado de trabalho; os negros que, estatisticamente, são as maiores vítimas de violência policial e ainda lotam as desumanas prisões do país; ou os indígenas, cujos conhecimentos sempre foram ignorados na formulação de políticas públicas. Em suma, ouvir a todos para possibilitar o igual acesso ao Estado.

É evidente que falar abertamente e escutar sem discriminações em um país desigual e de tradição autoritária, como o Brasil, não é tarefa simples. Todavia, trata-se de atuação necessária para a conquista de maior legitimidade e, consequentemente, de acúmulo de força para cumprir a tarefa institucional de fazer valer a Constituição.

Não nos iludamos: os ataques extremistas devem perdurar, e, diante de sua relevância institucional em tempos difíceis, o Judiciário não deixará de ser um dos alvos preferenciais da irracionalidade e da intolerância.

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