Ezra Klein

Colunista do New York Times, fundou o site Vox, do qual foi diretor de Redação e repórter especial

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Democratas e republicanos fizeram os EUA falharem na capacidade do Estado

Biden governa de mãos atadas; não dá para transformar a economia sem antes transformar o governo

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The New York Times

No início da Presidência de Joe Biden, Felicia Wong, presidente do liberal Instituto Roosevelt, disse-me que Biden é gravemente incompreendido. Ele atua na política há décadas, e por isso as pessoas olham para ele "e automaticamente têm uma visão antiga do que democratas representam –essa ideia de que são progressistas que defendem mais tributação e mais gastos públicos".

Wong achou que Biden queria fazer mais: "O que ele está tentando promover tem muito mais a ver com realmente reformular nossa economia de modo que ela faça coisas diferentes e produza resultados diferentes, regularmente."

Penso que Wong tinha razão quanto ao que Biden queria, ou pelo menos o que sua administração queria. Mas a execução não acompanhou a visão. E a razão é incômoda para os democratas. Não dá para transformar a economia sem primeiro transformar o governo.

O presidente dos EUA, Joe Biden, durante cerimônia em Arlington, no Texas
O presidente dos EUA, Joe Biden, durante cerimônia em Arlington, no Texas - Joshua Roberts - 30.mai.2022/Reuters

Em abril, Brian Deese, diretor do Conselho Econômico Nacional, fez um discurso sobre a necessidade de "uma estratégia industrial americana moderna". Foi uma contribuição contundente a um debate que a maioria dos americanos provavelmente ficaria perplexa se soubesse que os democratas estão travando.

Estratégia industrial é a ideia de que um país deve mapear um caminho para a capacidade produtiva que transcenda o que o mercado apoiaria por si só. De que é preciso haver alguma visão política na política econômica, alguma visão do que estamos tentando criar, mais além do que aquilo que os mercados financeiros premiam.

Tentar construir infraestrutura energética limpa é uma forma de estratégia industrial. Investir em cadeias de fornecimento domésticas de vacinas, máscaras e microchips, também. A ideia é malvista há décadas, mesmo entre democratas. Não queremos que o governo "selecione vencedores e perdedores", diz o ditado.

O argumento é basicamente este: quando os governos apostam em tecnologias ou em empresas, geralmente apostam errado. Os mercados são mais eficientes, mais adaptáveis, menos corruptos. Por isso os governos devem, quando possível, sair do caminho. O papel apropriado vem depois de o mercado ter feito seu trabalho, transferindo dinheiro daqueles que o possuem para os que precisam dele. Em termos simples: os mercados criam, os governos tributam e os políticos gastam.

São surpreendentes as premissas que se ocultam por trás do que é visto em Washington como bom senso. Considere a frase "vencedores e perdedores". Vencedores no quê? Perdedores como? Os mercados administram essas questões por meio de lucros e prejuízos, avaliações e falências. Mas as sociedades têm metas mais complexas. Criticar mercados por não realizar as metas da sociedade é como repreender uma torradeira porque ela nunca produz um quadro a óleo.

Logo, não direi que os mercados fracassaram. Nós fracassamos. O crescimento diminuiu, a desigualdade cresceu, a crise climática continuou a se agravar, a desindustrialização destruiu comunidades, a pandemia evidenciou a fragilidade das cadeias de fornecimento dos EUA, a China ficou mais autoritária e a guerra de Vladimir Putin expôs a insensatez de dependermos de países em que não podemos confiar para nos fornecer bens absolutamente necessários.

Ninguém enxerga isso como sucesso. Deese declarou o debate encerrado: "A questão deve passar de ‘por que devemos traçar uma estratégia industrial?’ para ‘como traçamos uma com sucesso?’".

Sou abertamente solidário com essa visão. Venho argumentando que precisamos de um liberalismo que constrói. Examine mais de perto as falhas de governança democrática moderna, especialmente nos estados azuis [democratas], e você geralmente constatará que o mercado não ofereceu o que precisávamos e que o governo ou não interveio ou agravou o problema graças a negligência ou a regulamentação excessiva.

Precisamos construir mais casas, trens, energia limpa, centros de pesquisas, vigilância sanitária. E precisamos fazer isso em menos tempo e por um custo menor. A nível nacional, boa parte da culpa pode ser atribuída ao obstrucionismo republicano. Mas esse nem sempre é o caso em Nova York, Califórnia ou Oregon. É excessivamente demorado e caro construir mesmo em estados onde republicanos são fracos.

E aqui a visão liberal frequentemente fecha os olhos. As críticas à ação pública feitas uma geração atrás aplicam-se mais ainda hoje. Temos um governo capaz de construir? A resposta, frequente demais, é não. O que temos é um governo que é extremamente bom em dificultar a construção.

O primeiro passo consiste em reconhecer que você tem um problema, e Deese fez isso. Ele disse: "Uma estratégia industrial americana moderna precisa demonstrar que os EUA são capazes de construir —rápido, como já fizemos no passado, e de modo justo, como às vezes não temos conseguido fazer".

Uma resposta (a resposta republicana típica) é que o governo não pode se encarregar desse trabalho e não deve tentar. Mas os dados não justificam essa posição. O Projeto de Custos do Transporte Público acompanha os custos de projetos ferroviários em diferentes países —é difícil traçar uma comparação do tipo "maçãs com maçãs" aqui, porque planos distintos são justamente isso, distintos, e faz uma diferença se incluem ou não um túnel, por exemplo.

Mesmo assim, os EUA se fazem notar por gastos altos e resultados parcos. Custa US$ 538 milhões (R$ 2,5 bilhões) construir 1 quilômetro de ferrovia no país. A Alemanha faz o mesmo por US$ 287 milhões (R$ 1,3 bi). O Canadá, por US$ 254 milhões (R$ 1,2 bi), e o Japão, por US$ 170 milhões (R$ 806 mi). Entre os países do banco de dados, a Espanha é o que gasta menos: US$ 80 milhões (R$ 379 mi).

Todos fazem mais túneis que os EUA, possivelmente porque conservam a confiança necessária para tentar regularmente. Quanto mais hábil você é em construir infraestrutura, mais ambicioso pode ser quando imagina a infraestrutura a ser construída.

O problema não é o governo. É o nosso governo. E não são os sindicatos problemáticos, outro bicho-papão favorito da direita. A densidade sindical é mais alta em todos esses países do que é nos EUA. Então o que deu errado?

Uma resposta que merece ser avaliada foi proposta por Brink Lindsey, diretor do Projeto Sociedade Aberta do Niskanen Center, num artigo de 2021 intitulado "Capacidade do Estado: o que é, como a perdemos e como recuperá-la". A definição que Lindsey propõe é admiravelmente concisa: "A capacidade do Estado é a capacidade de traçar e executar políticas públicas de modo eficaz".

Quando um governo não consegue recolher os impostos que lhe são devidos ou criar o portal para cadastramento em seu novo plano de seguro-saúde ou construir a ferrovia de alta velocidade com a qual já gastou bilhões de dólares, essa é uma falha de capacidade do Estado.

Mas um governo fraco frequentemente é um fim, não um acidente. O argumento de Lindsey é que, para consertar a capacidade do Estado nos EUA, precisamos entender que o Estado de mãos atadas que temos é uma escolha e que há razões pelas quais o escolhemos. O governo não é intrinsecamente ineficiente. Ele foi reduzido à ineficiência. E não apenas pela direita.

O que é mais necessário é uma mudança de ideias: a saber, a reversão das tendências intelectuais dos últimos 50 anos, mais ou menos, que nos trouxeram para a situação atual.

À direita, isso significa abrir mão do antiestatismo automático, abraçar a legitimidade de um Estado de bem-estar social e regulatório grande e complexo e reconhecer o papel vital desempenhado pelo funcionalismo público nacional (não apenas polícia e militares). À esquerda, rever o modelo de governança descentralizado e legalista que desde a década de 1960 guia a expansão do Estado de viés progressista, reduzindo o poder de veto exercido por grupos ativistas nos tribunais e deslocando o foco do traçado de políticas públicas para que, em vez de principalmente assegurar que o poder seja sujeito a restrições progressistas, assegurar que o poder possa de fato ser exercido efetivamente.

A administração Biden não pode fazer muita coisa em relação à hostilidade de direita ao governo. Mas pode confrontar os erros e as divisões da esquerda.

O ponto de onde começar é indicado em outro artigo do Niskanen Center, este de Nicholas Bagley, professor de direito na Universidade de Michigan. Em "O Fetiche do Processo", ele argumenta que a governança liberal desenvolveu uma preferência difícil de entender por legitimar as ações governamentais por meio de processos, não dos resultados. De modo provocativo, sugere que isso acontece porque a política americana de modo geral e o Partido Democrata em particular são dominados por advogados.

Joe Biden e Kamala Harris são formados em direito, assim como Barack Obama, John Kerry e Hillary Clinton. E tudo isso vai influenciando os vários níveis do partido, de cima para baixo. "São advogados, e não administradores, os que assumiram a responsabilidade principal por formular a lei administrativa nos EUA", escreve Bagley. "E se você só conta com um advogado, tudo ganha ares de problema processual."

Essa é uma maneira pela qual os EUA diferem de países pares. Robert Kagan, professor de direito na Universidade da Califórnia em Berkeley, descreveu esse fenômeno como "legalismo adversarial" e demonstrou que é uma maneira singularmente americana de refrear o poder do Estado.

A justificativa dada para essas políticas é que elas tornam a ação do Estado mais legítima, pelo fato de assegurar que vozes discordantes sejam ouvidas. Mas ao longo do tempo elas também vão tornando o governo ineficiente, e esse custo raramente é levado em conta. E isso nos conduz ao último, e a meu ver mais sábio, argumento de Bagley.

"A legitimidade não é única nem sequer primariamente fruto dos processos seguidos pelas agências", diz. "Ela deriva mais geralmente da percepção de que o governo é hábil, informado, que atua prontamente, é responsivo e é justo." É isso que perdemos —concretamente, não apenas na percepção.

Passei a maior parte da minha vida adulta estudando relatórios de think tanks para melhor entender como resolver problemas. Quando procuro ideias da esquerda sobre como construir capacidade do Estado, não encontro muita coisa. Não há nada que chegue perto da profundidade de pesquisas, reflexão e energia investidos em pensar políticas de saúde pública, climática e de educação. Mas, fato crucial, esses planos dependem de o Estado ser capaz de traçar e executar políticas públicas efetivamente.

Então é disto que tenho certeza hoje: os democratas passam tempo e energia demais imaginando as políticas públicas que um governo capaz deveria executar; e tempo insuficiente pensando em como tornar o governo capaz de executá-las. Não foram apenas os mercados que falharam.

Tradução de Clara Allain

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