Ezra Klein

Colunista do New York Times, fundou o site Vox, do qual foi diretor de Redação e repórter especial

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Saiba o que é altruísmo efetivo e por que o mercado de criptomoedas o transformou

Movimento filantrópico passa por acerto de contas após a queda de fundador da FTX

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The New York Times

Esta é minha coluna anual sobre filantropia, de modo que vou direto ao que interessa. Recomendo doar às quatro organizações de caridade mais bem avaliadas pela GiveWell: Malaria Consortium, Against Malaria Foundation, Helen Keller International e New Incentives.

Essas organizações distribuem medicamentos e mosquiteiros para prevenir a malária, suplementos de vitamina A para prevenir a cegueira e a morte infantil e dinheiro para vacinar crianças carentes contra toda uma gama de doenças.

O que distingue essas entidades é a confiança que sentimos no bem que elas fazem. Não faltam organizações vistas pelos doadores como excelentes, mas cujos programas nunca são examinados —e, quando isso ocorre, os benefícios muitas vezes decepcionam. As organizações citadas são diferentes: seu trabalho foi avaliado por estudos que mostraram que elas salvam vidas e evitam doenças a custo baixo.

Esse seria um conjunto banal de recomendações, mas neste ano é um pouco diferente.

O empresário Sam Bankman-Fried, da FTX, em retrato em Hong Kong - Lam Yik Fei - 26.mai.21/The New York Times

O altruísmo efetivo, movimento filantrópico do qual a GiveWell faz parte, passa por um acerto de contas após a queda de Sam Bankman-Fried, seu financiador e participante mais famoso. O caso dele foi incomum: ele começou a negociar com criptomoedas depois de almoçar com Will MacAskill. O filósofo de Oxford e cofundador do movimento disse a Bankman-Fried que ele provavelmente poderia fazer o bem em escala maior se ganhasse muito dinheiro e o doasse, em lugar de trabalhar numa organização sem fins lucrativos qualquer.

Dois anos mais tarde, Bankman-Fried pôs essa ideia em prática. "Ganhar para doar" é um conselho dado comumente: não entre para uma entidade e construa escolas no exterior, mas vá trabalhar para um fundo e em pouco tempo doe US$ 500 mil por ano para a compra de mosquiteiros.

Bankman-Fried diferenciou-se pela escala de seus ganhos aparentes e doações propostas. Ele fundou a corretora de criptomoedas FTX e acumulou uma fortuna que chegou teoricamente a dezenas de bilhões de dólares, que ele prometeu doar quase inteira. Era presença constante na mídia, falando de como havia atrelado seus bens a seus ideais.

Mas a fortuna nunca foi real. A FTX estava ligada à Alameda, a corretora de Bankman-Fried, e as empresas transferiam dinheiro uma para a outra, escorando suas reservas com criptoativos que não tinham valor funcional algum. Se a fortuna era falsa, o que dizer dos ideais que supostamente a moviam?

O altruísmo efetivo ajudou a justificar ou mesmo motivar os riscos assumidos e limites transpostos que acabaram por vaporizar bilhões de dólares? Como pode um movimento que se orgulha de seu pensamento de longo prazo ter ignorado tão completamente os pontos fracos de seu garoto-prodígio?

São perguntas razoáveis, mas não quero repisar demais a moral a tirar de algo que na realidade é uma velha história: um financista jovem, ousado e imprudente que atua num mercado basicamente desregulamentado ganhou uma fortuna em pouco tempo manipulando depósitos e perdeu tudo.

Não creio que o altruísmo efetivo deva ser culpado por isso e não quero ver uma reação negativa crescente dominar um movimento que já fez tanto bem e pode fazer mais. Logo, permita-me sugerir algumas áreas em que o altruísmo efetivo precisa realmente se recalibrar —não só por causa de Bankman-Fried— e retornar ao ponto inicial.

Devemos encarar o 'ganhar para doar' com mais ceticismo

Ganhar para doar sempre me pareceu um experimento mental que se faz passar por um conselho de vida. O problema não está em sua lógica, mas pessoas não são autômatos.

Profissões altamente remuneradas transformam quem as exerce. Não faltam exemplos a indicar que gostos espartanos e ideais imaculados de estudantes universitários raramente sobrevivem à imersão prolongada nos valores, pressões e possibilidades da riqueza crescente.

O ganhar para doar cria uma possibilidade mais perturbadora de racionalizar o uso de meios antiéticos a serviço de objetivos virtuosos. Oferecer mais motivações às pessoas para acumular o máximo que conseguem de riqueza precisa ser contraposto ao truísmo psicológico e histórico de que o dinheiro é uma força corruptora —e que poucos que correm atrás dele incansavelmente o fazem sem se comprometer.

E há também o risco que grandes doadores representam para os movimentos que eles apoiam. Museus, por exemplo, já tiveram que pesar prós e contras das doações da família Sackler, que lucrou com opiáceos.

Esse é um ponto fraco particular do altruísmo efetivo, que tende a idolatrar os bilionários tech de hoje. Mas uma lição a tirar do fiasco de Bankman-Fried é que, quanto mais os doadores o apoiam, mais você é visto como dando apoio a eles. Esse é um risco —que um movimento maduro precisa levar mais a sério.

Devemos encarar experimentos mentais com mais ceticismo

Quero tomar cuidado quando falo isso, porque o altruísmo efetivo tem raízes num experimento mental que foi positivo. O filósofo Peter Singer perguntou se você deve pular num lago para salvar uma criança se afogando, mesmo que isso estrague seus sapatos novos. "É claro que sim" é a resposta natural. Singer então indaga: faz diferença se a criança está num lago à sua frente ou num país do outro lado do mundo?

Se você acredita nessa ideia —eu acredito, em grande medida—, então tem que encarar a questão difícil de decidir até onde ela vai. Quando a opção que se apresenta é entre seu conforto e a sobrevivência de outra pessoa, mesmo luxos mais modestos passam a parecer imorais. Apenas os mais virtuosos de nós conseguimos acompanhar essa lógica moral até o fim, mas um pouco mais de altruísmo está ao alcance de muitos de nós.

Mas a cultura do altruísmo efetivo se deixa fascinar um pouco demais com experimentos mentais e modelos teóricos do futuro. Esse é um risco, já que o trabalho daqueles que salvam vidas e o dos que imaginam vidas futuras podem apontar em direções opostas. Isso não quer dizer que não valha a pena pensar no futuro. Mas já observei que nos últimos anos a energia do altruísmo efetivo vem sendo voltada muito mais para seus interesses e obsessões especulativos. É mais do que hora de fazer uma correção.

No meio das repercussões e das consequências do fiasco de Bankman-Fried, começou a circular nas redes o trecho de uma dissertação de Nick Beckstead, que até recentemente dirigia a FTX Foundation. Ele escreveu: "Me parece plausível que salvar uma vida num país rico é substancialmente mais importante que salvar uma vida num país pobre, tirando outros fatores de diferença".

Segundo seu raciocínio, como habitantes de países ricos produzem e inovam mais (ao menos segundo os critérios econômicos habituais), salvar vidas em países pobres "pode ter efeito cascata significativamente menor que salvar e melhorar vidas em países ricos". A dissertação é complexa, e filósofos precisam apresentar argumentos que soariam esdrúxulos fora dos limites de sua disciplina. A questão é qual modo de encarar o mundo vai acabar definindo o altruísmo efetivo.

Porque, como constatou a GiveWell, a lógica toma um rumo precisamente oposto quando nos limitamos aos resultados que podemos medir de fato. Uma das principais realizações do altruísmo efetivo tem sido persuadir doadores de países ricos a investir mais em entidades eficazes que atuam em países pobres.

Devemos encarar a falsa precisão com ceticismo

Vale a pena questionar como um movimento pode abranger duas alas tão díspares, e acho que a resposta é retórica. Penso que a ala mais especulativa do movimento desenvolveu uma cultura que usa o pensamento probabilista e valores inventados de maneiras que criam uma percepção infundada de precisão. Assim, pode parecer que as pessoas que enfocam o que podemos saber e as que enfocam o que não temos como saber estão fazendo o mesmo trabalho. Mas não estão.

Toby Ord lançou um livro em 2020 que reflete sobre muitos dos caminhos pelos quais a humanidade pode chegar à ruína total. O cerne é uma tabela contendo estimativas da probabilidade de diferentes riscos existenciais poderem provocar nossa destruição em cem anos: asteroides têm uma chance em 1 milhão de aniquilar a humanidade; pandemias naturais, uma chance em 10 mil. Uma guerra nuclear e a crise climática têm uma chance em mil cada uma. Mas o risco de sermos extintos por inteligência artificial que foge do controle são de uma em dez.

Essa tabela resume ao mesmo tempo o valor e o perigo de converter especulações em probabilidades. O valor é que Ord tenta apresentar seus pontos de vista com a maior precisão possível. O risco é que esse frio desfile de números confira a essas estimativas uma autoridade que eles não merecem.

Isso não quer dizer que especular seja errado, mas penso que a precisão falsa pode fazer o irreal parecer real e ocultar a precariedade de tudo que antecedeu a quantificação.

Esse é o elo mais claro entre a queda de Bankman-Fried e determinados elementos da cultura altruísta efetiva: a criptofortuna é baseada na atribuição de valores e probabilidades a ativos e moedas fictícios.

Esse problema existe em outras áreas do capitalismo, mas se concentra de forma cristalina nos criptomercados. Há apenas código e quantificação, e os números conferem solidez não merecida a uma abstração. Acho que os altruístas efetivos têm uma tendência a iludir-se da mesma maneira.

Podemos e devemos fazer o bem com mais frequência

Receio que esta coluna seja interpretada como uma razão para descartar quaisquer dúvidas que soam estranhas da primeira vez que são ouvidas. Não é isso que estou dizendo.

Os altruístas efetivos têm se esforçado muito para persuadir as pessoas a se preocupar mais com a inteligência artificial —e têm razão em fazê-lo. Não podemos olhar para o desempenho notável dos modelos mais recentes de IA e não achar que é importante refletir sobre as consequências de sistemas tremendamente mais poderosos.

Mas acho que uma parte grande demais da energia e do talento do altruísmo efetivo está se afastando do rigor compassivo que distinguiu o movimento inicialmente e que o mundo ainda necessita. Ele será muito menos efetivo se perder contato com seu objetivo inicial de melhorar a vida de pessoas vivas hoje.

Tradução de Clara Allain

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