Ezra Klein

Colunista do New York Times, fundou o site Vox, do qual foi diretor de Redação e repórter especial

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Elon Musk comprou o Twitter porque entende o Twitter

A menos que mude o próprio comportamento, empresário levará contradições da plataforma a nível insuportável

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Ezra Klein
The New York Times

Elon Musk pode quebrar o Twitter? Espero que sim. Não estou acusando Musk de ser um agente à espreita. O homem ama o Twitter. Ele tuíta como se tivesse sido criado pelo passarinho azul e pela "baleia da falha" —o desenho que aparece quando a rede social enfrenta problemas técnicos.

Três dias antes de fechar a compra da plataforma, Musk disparou uma foto nada lisonjeira de Bill Gates e, ao lado, uma ilustração de um homem grávido. "Caso você precise broxar rapidamente", disse a Personalidade do Ano de 2021 da Time a seus mais de 80 milhões de seguidores.

Musk acreditava que Gates estava vendendo a descoberto as ações da Tesla. Recebeu mais de 165 mil retuítes e 1,3 milhão de curtidas. Esse é um homem que entende o que o Twitter realmente é.

Elon Musk, o presidente-executivo da Tesla e da SpaceX, durante evento em Berlim, na Alemanha
Elon Musk, o presidente-executivo da Tesla e da SpaceX, durante evento em Berlim, na Alemanha - Patrick Pleul - 22.mar.22/Pool via AFP

Jack Dorsey, cofundador e ex-diretor-executivo da rede social, sempre quis que fosse diferente. Algo que não era, e não poderia ser. "O objetivo do Twitter é servir ao diálogo público", disse ele em 2018. O Twitter começou a "medir a saúde da conversa" e a tentar ajustar a plataforma para melhorá-la.

Por mais sincero que fosse o esforço, era como os anúncios de bebidas que aconselham moderação. Você não faz as pessoas beberem menos vendendo uísque. Da mesma forma, se sua intenção fosse promover uma conversa saudável, não limitaria os pensamentos a 280 caracteres ou adicionaria botões de curtida e retuíte ou recursos de citação de tuítes. O Twitter não pode ser um lar para se ter conversas saudáveis porque não foi feito para isso.

Então, para que serve o Twitter? Ele foi construído para transformar a conversa em game. Como escreveu C. Thi Nguyen, filósofo da Universidade de Utah, ele faz isso "oferecendo avaliações imediatas, vívidas e quantificadas do sucesso de uma conversa. O Twitter nos oferece pontos pelo discurso; dá nota à nossa comunicação. E esses recursos de jogo são responsáveis por grande parte do poder psicológico do Twitter. O Twitter é viciante, em parte, porque é tão bom ver os números subirem cada vez mais".

O argumento central de Nguyen é que os jogos são prazerosos porque simplificam de certo modo a complexidade da vida. Eles tornam as regras claras, a pontuação visível. Isso é bom quando queremos jogar. Mas às vezes acabamos em jogos, ou sistemas semelhantes a jogos, em que não queremos trocar nossos valores pelos dos —designers e nem percebemos que estamos fazendo isso. O perigo, então, é o que Nguyen chama de "captura de valor". Isso ocorre quando:

  1. Nossos valores naturais são ricos, sutis e difíceis de expressar;
  2. Somos colocados em um ambiente social ou institucional que apresenta versões simplificadas, geralmente quantificadas, de nossos valores de volta para nós mesmos;
  3. As versões simplificadas dominam nossa motivação e deliberação.

O Twitter pega os valores ricos, numerosos e sutis que trazemos para a comunicação e quantifica nosso sucesso por meio de contagens de seguidores, curtidas e retuítes. Lentamente, o que o Twitter recompensa se torna o que fazemos. Se não o fizermos, não importa –ninguém vê o que estamos dizendo, de qualquer maneira. Nós nos tornamos o que o jogo quer que sejamos, ou perdemos. E é isso que está acontecendo com algumas das pessoas, setores e conversas mais importantes do planeta hoje.

Muitos usuários poderosos do Twitter são das elites política, da mídia, do entretenimento e da tecnologia. Eles –nós!– são particularmente suscetíveis a um discurso "gamificado" sobre os temas pelos quais somos obcecados. É difícil fazer mudanças políticas. É difícil criar um grande jornalismo. É difícil preencher a necessidade cada vez maior de validação. É difícil marcar o arco do progresso tecnológico.

O Twitter oferece a simulação instantânea e constante de fazer exatamente isso. O retorno é imediato. As oportunidades são infinitas. Esqueça a "perfuração forte e lenta de tábuas duras" de Max Weber. O Twitter é uma furadeira poderosa, ou pelo menos parece uma.

A esta altura, a resposta provavelmente parece óbvia: "Faça logoff!". Nós podemos, e muitos fazem isso. Mas tem um custo. Fazer logoff é perder muito do que importa, em setores em que saber o que importa é essencial. Tornou-se clichê dizer que o Twitter não é a vida real, e é verdade.

Mas ele molda a vida real ao moldar as percepções daqueles que são expostos. Ele molda a vida real ao moldar o que a mídia cobre (não é à toa que o New York Times agora pede que os repórteres se desconectem do Twitter e se reengajem com o mundo fora de suas telas). Ele molda a vida real, dando aos políticos e aos titãs dos negócios que o dominam o controle da agenda de atenção. Atenção é moeda, e o Twitter é o mercado de atenção mais importante que existe.

Há uma razão pela qual Donald Trump, com seu dom sobrenatural de fazer as pessoas olharem para ele, foi o usuário mais natural e bem-sucedido do Twitter. E ele mostra como a plataforma pode moldar a vida de quem nunca a usa. De 2017 a 2021, a Casa Branca foi ocupada pelo que era, na verdade, uma conta no Twitter com sistema cardiovascular, e o mundo inteiro sofreu as consequências.

Não sou um crítico automático de Musk. Ele tem feito coisas notáveis. Transformou o mercado de carros elétricos de um remanso para hippies no futuro inquestionável da indústria automobilística, e o fez da única maneira sustentável: tornou os carros elétricos incríveis. Ele revigorou o interesse americano pelo espaço e o fez da única maneira sustentável: tornando os foguetes mais incríveis e acessíveis.

Fez grandes investimentos em energia solar e inovação de baterias e tentou pensar com criatividade sobre transporte de massa, com investimentos em tecnologia de hyperloop e perfuração de túneis. Cofundou a OpenAI, empresa de inteligência artificial que tem mais espírito público entre as grandes.

Muito disso foi construído com base em subsídios públicos, contratos governamentais, garantias de empréstimos e créditos fiscais, mas não considero isso um marco contra ele: ele é o melhor argumento da era moderna de que o governo e o setor privado podem fazer juntos o que nenhum dos dois pode conseguir separadamente. Na verdade, temo que o Twitter distraia Musk de trabalhos mais importantes.

Tampouco me surpreende que um currículo como o de Musk coexista com uma tendência a manias, obsessões, rancores, repressão a sindicatos e vingatividade. Personalidades extremas raramente estão no limite da curva apenas em razão da benevolência. Mas o Twitter libera seus piores instintos e o recompensa, com atenção, seguidores e dinheiro –muito dinheiro– por satisfazê-los.

O fato de Musk ter dobrado tão habilmente o Twitter para seus próprios fins não o absolve de seu comportamento lá, não mais do que absolveu Trump.

Uma plataforma que enche de recompensas aqueles que se comportam de forma cruel, ou apenas irresponsável, é uma coisa perigosa. Mas com muita frequência é o que o Twitter faz. O Twitter recompensa pessoas decentes por agirem de forma indecente. O mecanismo pelo qual isso acontece não é nenhum mistério. O engajamento segue respostas cortantes, declarações ousadas e jogadas cruéis.

"Frustrado que Bill Gates apostaria contra a Tesla, uma empresa alinhada a seus valores" é um tuíte idiota. "Bill Gates = matador de tesão" é um sucesso viral. O jeito mais fácil de ganhar pontos é piorar o discurso.

O Twitter sobreviveu e prosperou porque nunca foi exatamente o que descrevi aqui. Muito do que pode ser encontrado lá é engraçado, inteligente e amável. Muitos na plataforma querem que seja um lugar melhor do que é e tentam torná-lo assim. Durante muito tempo eles foram acompanhados nessa busca pela classe executiva do Twitter, que queria o mesmo. Eles gostavam do Twitter, mas não muito. Acreditavam nele, mas também ficavam um pouco chocados com ele. Essa tensão fundamental –entre o que o Twitter era e o que muitos acreditavam que poderia ser– mantinha o equilíbrio. Não mais.

A agenda declarada de Musk para o Twitter é confusa principalmente por sua modéstia. Ele propôs um botão de edição, um algoritmo de código aberto, repressão aos bots e fazer alguma coisa para garantir a livre expressão. Tendo a concordar com o escritor de assuntos tecnológicos Max Read, que prevê que Musk "se esforçará para manter o Twitter no mesmo nível ruim, e da mesma forma que sempre foi, porque, para Musk, o Twitter realmente não é ruim".

Musk revela o que ele quer que o Twitter seja pelo modo como age nele, na verdade. Você o conhecerá por meio de seus tuítes. Ele quer que seja o que é, ou ainda mais anárquico que isso. Onde talvez eu discorde de Read é que acho que será uma mudança cultural maior para o Twitter do que qualquer um imagina ter o dono do serviço agindo como Musk age; ter o dono da plataforma abraçando e personificando seus excessos de um modo que nenhum líder anterior fez.

Como parecerá o Twitter para os progressistas quando Musk zombar da senadora Elizabeth Warren na plataforma que ele possui e controla como "senadora Karen"? Eles vão querer enriquecê-lo contribuindo com mão de obra gratuita para sua empresa? Os conservadores agora estão comemorando a compra da plataforma por Musk, mas —e se— diante de uma crise cada vez mais profunda de desinformação eleitoral, ele entrar no modo maligno contra políticos de direita que estejam impossibilitando suas esperanças de moderação, ou que ameacem sua agenda para a mudança climática?

Como será trabalhar no Twitter quando o patrão estiver usando sua conta para entrar em guerra com a Comissão de Valores Mobiliários ou lutar contra uma lei fiscal que ele não aprova?

A menos que Musk mude seu próprio comportamento de forma radical e implausível, suspeito que sua propriedade aumentará as contradições do Twitter a um nível insuportável. O que se seguiria não é o colapso da plataforma, mas o dimensionamento correto de sua influência.

Ou talvez não. Apostar contra Musk fez muitos parecerem tolos nos últimos anos. Mas ainda me considero um crente cauteloso no poder de Musk de fazer o impossível –neste caso, expor o que é o Twitter e dimensionar corretamente sua influência. Na verdade, ele é o único com poder para fazer isso.

Musk já é o melhor jogador do Twitter. Agora está comprando o salão de jogos. Tudo o que as pessoas amam ou odeiam ali se tornará culpa dele. Tudo o que ele fizer que as pessoas amem ou odeiem será levantado contra a plataforma. Ele será o Twitter. Ele terá vencido o jogo.

E nada perde tanto o brilho quanto um jogo que foi vencido.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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