Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Não é normal um gigante da música internacional ignorar nossos artistas

Com sua performance milimetricamente planejada, o ex-beatle não deu espaço para o que temos aqui, o que é pior para ele

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Na semana passada, o artigo escrito por este colunista sobre a falta de diálogo de Paul McCartney com a música brasileira causou certa polêmica.

Por que Paul deveria tentar contato com artistas brasileiros, afinal? E o que ele ganharia dialogando com artistas brasileiros? —perguntaram os internautas, numa síndrome vira-lata de doer, como se não tivéssemos nada a contribuir para a cultura mundial. Se Paul não percebe o valor da música brasileira, pior para ele. Não é normal um gigante da música internacional ignorar nossa música.

Se o beatle é um gigante da música, o que dizer de Frank Sinatra? O cantor americano gravou um disco com outro gênio à sua altura, nosso Tom Jobim, em 1967. Não foi o maestro brasileiro quem se dobrou ao repertório americano de Sinatra, mas o oposto. E se ficarmos na praia do jazz, veremos vários artistas internacionais de quilate louvando a música brasileira.

A maravilhosa Sarah Vaughan sempre foi fã da música brasileira. No início dos anos 1970 ela cantou com Wilson Simonal de igual para igual em um especial da TV Tupi que pode ser visto no Youtube. Apaixonada pelo som nacional, ela gravou o LP "O Som Brasileiro de Sarah Vaughan" (1978), com canções do repertório da MPB e Bossa Nova. E dividiu o estúdio com músicos do quilate de Tom Jobim, Hélio Delmiro, Dorival Caymmi, Milton Nascimento, Wilson das Neves, Danilo Caymmi e Paulo Jobim. Em 1981 Sarah gravou a música "Something" (George Harrison) no disco "Songs of the Beatles" com o pianista Marcos Valle.

Show do cantor Paul McCartney, no estádio do Maracanã, na zona norte do Rio de Janeiro - Folhapress

Igualmente envolvida pela música brasileira, a cantora Ella Fitzgerald cantou em 1972 uma versão em português de "Madalena", de Ivan Lins, um dos artistas mais respeitados fora do Brasil. Apaixonada por nossa música, a americana gravou em 1981 um álbum só com composições de Tom Jobim.

Chet Baker esteve no Brasil em 1985 para duas apresentações na primeira edição do Free Jazz Festival. Sua banda era formada pelos brasileiros Rique Pantoja (piano) e Sizão Machado (baixo). Como não poderia deixar de ser, Baker também gravou Tom Jobim. Sua versão de "Zíngaro", instrumental de "Retrato em Branco e Preto", gravada em abril de 1987 e lançada em disco póstumo de 1995, é fenomenal.

Para coroar a relação do jazz internacional com a música brasileira, o que dizer de um dos maiores álbuns da história? Trata-se do LP "Getz/Gilberto", lançado em 1964 por João Gilberto e o saxofonista estadunidense Stan Getz, com participação especial de Tom Jobim no piano e Astrud Gilberto nos vocais de algumas faixas. Foi simplesmente o disco que popularizou a bossa nova em todo o mundo. Em contrapartida, tornou-se um dos álbuns de jazz mais vendidos de todos os tempos e o recebeu o Grammy de melhor disco do ano em 1965.

"Native Dancer", álbum de 1975, foi fruto da parceria do saxofonista de jazz Wayne Shorter com o músico brasileiro Milton Nascimento. O americano convidou Bituca para gravar um disco com ele depois de ouvir canções do LP "Clube da Esquina" em 1972, quando veio ao Brasil tocar com seu aclamado grupo de jazz fusion Weather Report.

O baixista e jazzista Ron Carter também é um grande amigo da música brasileira. Ele gravou no disco "Stone Flower" (1970), de Tom Jobim, e no CD "Entre Amigos", de Rosa Passos, cantora que acompanhou em 2003. Em 1994 participou de "Angelus", de Milton Nascimento, álbum que contou ainda com Herbie Hancock (piano), Pat Metheny (guitarra) e Jack DeJohnette (bateria) entre os músicos de quilate internacional.

Indo além do jazz, onde o Brasil é visto com digno respeito, artistas de outros gêneros também louvaram a música nacional. Diferentemente de Paul McCartney, Paul Simon soube dignificar a magnitude de Milton Nascimento. O autor de "Bridge Over Troubled Water" gravou, ao lado do jazzista Herbie Hancock, uma música do brasileiro em 1987, "O Vendedor de Sonhos". No ano seguinte, os dois cantaram juntos em um especial da TV americana.

O cineasta Pedro Almodóvar é fã da música brasileira e, especialmente, de Caetano Veloso. A relação entre o baiano e o espanhol chegou ao auge quando Pedro filmou "Fale com Ela", em 2002, e chamou Caetano para cantar na película. Um dos personagens principais, maravilhado, diz: "Este Caetano me pone los pelos de punta!"

Artistas do pop-rock também se encantaram com a música nacional. A banda nova-iorquina Talking Heads flertou intensamente com a música brasileira. Seu principal membro, David Byrne, foi um dos responsáveis pela volta do tropicalista Tom Zé de seu ostracismo musical nos anos 1990.

O cantor Sting, do The Police, se aproximou tanto da música brasileira nos anos 1980 que sua paixão redundou no convite de Tom Jobim para gravar "How Insensitive", no último disco do maestro soberano em 1994.

Por sua vez, o gênio Stevie Wonder gravou gaita no clássico "Samurai", de Djavan, de 1982. Michael Jackson gravou com os baianos do Olodum em 1995 o sucesso mundial "They Don't Care About Us", cujo clipe foi gravado nas ruas do Pelourinho.

O californiano Ben Harper gravou com Vanessa da Mata a canção "Boa Sorte", em 2007. Em 2013, o roqueiro Bruce Springsteen surpreendeu o público ao tocar "Sociedade Alternativa", de Raul Seixas, em show em São Paulo. Em 2017, o Maroon 5 emocionou o Rock in Rio inserindo "Garota de Ipanema" no repertório do show da banda.

Em 2023, o Coldplay chamou Seu Jorge ao palco e tocou com o brasileiro "Amiga da Minha Mulher" em show no estádio do Morumbi, em São Paulo, para 72 mil espectadores. Em setembro passado, Bruno Mars usou "Evidências", clássico do repertório de Chitãozinho e Xororó, para embalar seus shows no Brasil.

Na música sertaneja também houve vários diálogos frutíferos com a música internacional, especialmente com o country americano. Billy Ray Cyrus, Shania Twain e até os Bee Gees já gravaram com artistas sertanejos.

Entre aqueles da geração de Paul McCartney, vários artistas compreenderam o tamanho da música brasileira. A banda Os Monkees gravou "How Insensitive", de Tom Jobim. Segundo o pesquisador Sergio Farias, biógrafo da banda, a música era para ser lançada num disco duplo, em 1968, que terminou por ser simples. A versão dos Monkees acabou saindo em 1996.

O mesmo destino teve a gravação de "Tenho Sede" por Eric Clapton, clássico dos forrozeiros Dominguinhos e Anastácia. A canção foi gravada para entrar no disco "No Reason to Cry", de 1976, mas acabou ficando de fora. Clapton veio ao Brasil no ano anterior e conheceu Gilberto Gil, Caetano Veloso, Rita Lee e Jorge Ben, entre outros, e ficou encantado.

Embalados pelas tradições de nosso país, os Rolling Stones se inspiraram para compor "Simpathy for the devil", um de seus grandes clássicos, depois de uma viagem de Mick Jagger ao Brasil em 1968.

Diante de toda essa sintonia mundial com a música brasileira, o quadro geral fica feio para Paul McCartney. É uma pena, pois parece ser uma rejeição que acontece especificamente em relação ao Brasil. Em 2012, ele chamou um conjunto de mariachis para tocar "Ob-la-di Ob-la-da" com ele no palco da cidade do México.

Talvez se fossem John ou George a vir ao Brasil, haveria mais chance de intercâmbios. O filho de John, Sean Lennon, já se declarou fã de Tom Jobim, João Gilberto, Tom Zé e Mutantes. Com certeza o filho antenado faria a cabeça do pai.

Por sua vez, George Harrison gravou guitarras em "Anna Júlia", regravação do disco de Jim Capaldi de 2001. Capaldi era ex-membro da banda inglesa Traffic e George fez da canção dos Los Hermanos uma das últimas gravações da sua vida.

O jornalista Álvaro Pereira Junior levantou boa hipótese para refletir sobre por que Paul nunca flertou com a música brasileira em suas apresentações. O show do ex-beatle é uma performance milimetricamente planejada, hiper engessada, sem espaço para a espontaneidade do flerte com uma música "estranha". Pode ser. Mas aposto que seja mero desconhecimento mesmo.

Paul precisa sair do casulo. Se fosse mais aberto, teria homenageado o bossa novista Carlos Lyra, infelizmente morto no dia do seu show. Imaginem McCartney cantando "Coisa Mais Linda", clássico de Lyra, em pleno Maracanã!

Se Paul McCartney desconhece quem foi Carlos Lyra, Bob Dylan deu dignidade ao mestre da bossa nova. No primeiro volume de sua autobiografia intitulada "Crônicas", Dylan escreveu sobre como se viu representado na atitude revolucionária dos brasileiros:

"Artistas latinos também estavam quebrando as regras. Artistas como João Gilberto, Roberto Menescal e Carlos Lyra estavam libertando-se do samba infestado de percussão e criando uma nova forma de música brasileira com modulações melódicas. Eles a chamavam de bossa nova. Quanto a mim, o que fiz para me libertar foi pegar modulações simples do folk e colocar imagens e atitude novas, usar fraseados que capturavam a atenção e metáforas combinados com um novo conjunto de costumes que evoluíam para algo diferente, que não fora ouvido antes."

Paul McCartney, ao contrário do igualmente gigante Bob Dylan, não conhece a música brasileira. Pior para Paul.

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