Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Será preciso balancear número aceitável de mortes e relaxamento da quarentena

Ciência pode traçar os melhores caminhos, mas só debate ético e político é capaz de indicar o destino

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Esses últimos meses não foram fáceis para ninguém. Literalmente. E os próximos também não prometem; não há expectativas de vacinas ou remédios milagrosos para o coronavírus. Para além da vacina e do medicamento, com os quais a ciência ainda pode nos brindar em longo termo, muito do que a ciência tinha para nos informar de como se comporta o vírus ela já o fez. Claro, ainda há vários buracos que precisam ser preenchidos, mas as linhas gerais já estão desenhadas.

Como viveremos com essas informações é uma questão política, ética ou filosófica, mas não científica. Merece, portanto, um debate de boa-fé.

Já sabemos bastante sobre como o vírus se propaga, quão rapidamente ele sofre mutações e como a imunidade é adquirida. Podemos dizer com relativa segurança que adquirimos anticorpos independentemente da severidade da infecção e que as mutações do vírus até agora são essencialmente irrelevantes para a nossa resposta imunológica (mas não necessariamente para a severidade da infecção).

A letalidade (relação entre mortes por doentes) também aparenta ser menor —pelo menos onde os melhores estudos foram feitos— do que se inicialmente supunha. Bons estudos vindos da Dinamarca e da Alemanha apontam para uma faixa média de 2 a 5 mortes por mil infecções —pelo menos naqueles países, cinco vezes menor do que a faixa original estimada de 10 a 25.

Sabemos também que as mortes se concentram enormemente nos mais velhos e com saúde frágil. Para os abaixo de 70 anos e relativamente saudáveis, o estudo da Dinamarca encontrou uma taxa de letalidade de 8 a cada 10 mil infectados, e esse índice abaixa ainda mais com a idade.

Um argumento incontestável a favor do "lockdown" foi a assimetria temporal do nosso conhecimento: era mais prudente esperar em isolamento total pra entendermos melhor a doença antes de decidirmos o que fazer. Alguns meses em "lockdown" poderiam salvar quase todas as vidas caso um remédio milagroso fosse encontrado.

Mas, conforme o fluxo de novas informações sobre o vírus se torna mais incremental e a perspectiva de uma revelação revolucionária no futuro próximo se esvai, há a necessidade de reavaliar os próximos passos. A informação que temos já é suficiente para isso. Com quase 300 mil mortes e mais de 1,6 milhão de pessoas recuperadas, os sinais fortes nos dados já apareceram (o que não quer dizer que já saibamos tudo sobre o vírus).

O professor de epidemiologia François Balloux, da UCL (University College London) oferece uma comparação: “epidemiologia é largamente sobre lidar responsavelmente com falta de informação. Eu já trabalhei com tuberculose por dez anos [que mata consistentemente ao redor de 1,5 milhão de pessoas por ano]. Eu suspeito que sabemos mais sobre Covid-19 que sobre tuberculose”.

Imaginemos então que nenhuma vacina surgirá para a Covid-19 nos próximos dois anos —de fato, um sucesso seria o primeiro para um coronavírus. Quais escolhas temos pela frente? Essa questão não é mais científica e sim, como argumentarei abaixo, ética.

Para entender as possíveis opções de estratégias futuras, primeiro precisamos retirar uma concepção errada do caminho: com ou sem vacina, só há uma saída desta crise, e é por imunidade de rebanho. Por imunidade de rebanho, me refiro a um conceito mais elástico que o normalmente entendido popularmente.

Neste sentido mais amplo, imunidade de rebanho se dá quando o vírus não encontra hospedeiros suficientes para a sua propagação. Isso pode ser devido a um isolamento extremo e uma população largamente suscetível, ou ao isolamento natural e uma população largamente imune. Ou qualquer coisa entre os dois: quanto mais limitamos contato, menos pessoas precisam estar imunes para frear a propagação e vice-versa. Esse é, de forma bruta, o espectro estratégico que nos apresenta.

Nesse espectro, o campo de isolamento extremo certamente carrega menor número de mortes: claro, quanto menor o contingente infectado, menos mortos. Por outro lado, esse campo também carrega mais sanções a liberdades com as quais estamos acostumados e, como nele muito mais gente permanece suscetível, é também uma posição muito mais instável e difícil de manter a longo prazo.

A Coreia do Sul ilustra esse tipo de dificuldade: atingiu imunidade de rebanho pelo lado de isolamento extremo relativamente cedo, mas agora sofre bastante para mantê-la. Seguindo estratégias desse lado do espectro, mesmo inicialmente bem-sucedidos, países terão que se manter relativamente isolados uns dos outros. Quarentenas de um número (bem limitado) de passageiros internacionais poderiam continuar indefinidamente, mas nem isso garantiria sucesso.

Para o lado do espectro correspondendo a menor isolamento, teremos mais mortes, mas menos sanções a liberdades. A ausência de qualquer medida de isolamento natural resultaria em um colapso do sistema de saúde para a maior parte dos países e consequentemente muitas mortes adicionais.

Tendo em vista essa possibilidade, a Suécia adotou uma posição mais no centro do espectro, com o único objetivo de manter seu sistema de saúde respirando: o famoso "achatar a curva", do qual se ouvia falar no começo da crise. Um dos argumentos da Suécia para não adotar isolamento ainda maior é que seria impossível não escorregar do campo do isolamento extremo para o lado de menor isolamento (é esse deslize que a Coreia agora tenta evitar). Essa posição do espectro, ponderaram, era sustentável, e mais facilmente relaxável de volta ao grau de isolamento natural da sociedade.

Os pontos diametralmente opostos do espectro são frequentemente caracterizados de forma simplória e enganosa: aqueles que valorizam a economia e aqueles que valorizam vidas. Mesmo pondo de lado o fato de que perdas econômicas também têm consequências para a expectativa de vida e a saúde, não acredito que essa substituição grosseira de “pró-economia” represente bem quem escolhe o lado mais sueco do espectro.

A economia é um conceito abstrato, mas, neste debate, os detratores da política de "lockdown" —aqueles que acham que deveríamos deslizar mais para o lado de isolamento-natural— frequentemente têm algo mais concreto em mente: valores humanos.

Perguntam: o que faz valer a pena a vida ser vivida? A filosofia calvinista, tão influente para o capitalismo, diria que parte da resposta é o trabalho. Pois agora, ao redor do mundo, recordes de desemprego inimagináveis desde a Grande Recessão estão sendo alcançados. Milhares de empresas quebradas não têm perspectiva de recuperação. Milhões perdem assim o que veem como condição essencial à sua condição humana.

A filosofia utilitarista traria uma resposta mais includente que a calvinista: diz que o bom é maximizar o bem-estar e minimizar o mal-estar total da população. Irmos a um jogo de futebol com os amigos, assistirmos à uma peça de teatro, passar tempo com amigos e família, educarmos e socializarmos nossos filhos, atingirmos igualdade social e de gênero, tudo isso conta.

Pois agora milhões de crianças deixam de ser educadas e socializadas, mulheres perdem ainda mais espaço no mercado de trabalho e os mais pobres —que majoritariamente são os que não podem trabalhar de casa— absorvem a maior parte do impacto do isolamento, aumentando ainda mais a desigualdade social.

Um dos utilitaristas mais conhecidos do mundo, o filósofo de Princeton Peter Singer, resumiu: “Sim, pessoas morrerão se reabrirmos, mas as consequências de permanecermos fechados são tão severas que talvez tenhamos que nos reabrir de qualquer forma”.

Ao designarem estratégias nacionais como científicas, governos ao redor do mundo evitavam o balanço de valores que desenhei acima. Por exemplo, o Reino Unido, onde vivo (e onde contraí o vírus, diga-se de passagem), baseou-se em uma premissa ética hoje praticamente incontestável: diminuir o risco de vida a qualquer custo.

De fato, essa máxima está mais entrincheirada na nossa cultura moderna que os ensinamentos de qualquer escola filosófica. Estamos acostumados, por exemplo, a estender vidas indefinidamente por meios artificiais, mesmo em casos com pouquíssima chance de recuperação para um estado sadio. Desligar um suporte artificial para manter um senhor de 95 anos em estado vegetativo é questão controversa. A nossa intuição —pelo menos a minha— é que todo minuto a mais de vida vale qualquer preço para a sociedade, independentemente de como esse minuto será vivido.

Mas a situação atual e principalmente o movimento de reabertura de muitos países europeus e asiáticos aos poucos nos mostra que nenhum valor é absoluto: todos nós admitimos algum equilíbrio entre risco e outros valores. A Suécia desde o início admitiu maior risco de infecção para manter mais liberdades e, portanto, por enquanto, têm mais mortos que todos os seus vizinhos.

Mas outros países agora também começam a deslizar para o campo sueco. A Dinamarca, que inicialmente adotou um "lockdown" padrão, ao reabrir escolas já em abril, admitiu que o bem de educar e socializar suas crianças superava o aumento do risco de infecção. A Alemanha e outros países europeus começam também a vagarosamente caminhar para esse lado, e todos admitem que esse movimento aumentará o risco e, por consequência, o número absoluto de mortos.

Esses países começam a entender que a escolha não é tão efêmera quanto no ínicio supúnhamos: o ponto de equilíbrio escolhido precisa ser mantido a médio e longo prazo e isso nos força a avaliar mais seriamente qual aumento de risco vale o sacrifício de quais outros valores.

Em que tipo de sociedade queremos viver? Para ilustrar mais vividamente a questão, pergunte-mo-nos: para uma doença qualquer, qual risco de letalidade estaríamos dispostos a assumir para manter quais valores? Uma por mil para não aumentar a desigualdade social e de gênero? Duas por 10 mil para manter escolas abertas? Três por 100 mil para podermos encontrar nossos amigos ao ar livre?

Apesar de não atentarmos, a natureza nos lança esse tipo de pergunta frequentemente. Tanto em menor escala no dia a dia quanto em maior: historicamente há mais exemplos do que podemos contar. Aqui vai uma ilustração, imperfeita, porém mais moderna e, pelo que sei, inexplorada: 32 milhões de vidas foram perdidas ao HIV, e mais 37,9 milhões de pessoas são atualmente HIV positivas.

Poderíamos diminuir esse risco eliminando algumas liberdades. Poderíamos, por exemplo, restringir a atividade sexual a locais designados, onde os participantes seriam testados e liberados. Ou poderíamos obrigar todos os maiores de 17 anos a carregar camisinhas. E assim por diante. Por que não colocar isso em pauta? O ponto é que nesse caso do HIV também fizemos uma escolha.

Sim, uma escolha implícita e de caráter bem diferente da que fazemos agora, mas ainda assim uma escolha entre um número aceitável de mortes —de aumento de risco— e liberdades. Aos poucos começamos a entender que esse tipo de escolha existe também agora, e que ela nunca é baseada em um valor absoluto. Na prática e na teoria, valores devem ser balanceados uns com os outros.

E esta é a questão filosófica que agora enfrentamos: qual aumento de risco de vida estamos dispostos a suportar para manter outros pilares da vida moderna intactos?

Cai por chão, assim, o discurso de políticos mundo afora que nos dizem que “seguem a ciência”. Se fosse isso mesmo acabou o debate, e só há uma resposta certa. Mas a ciência só pode informar o debate, não resolvê-lo. Como disse o filósofo escocês David Hume, ao espantar o fantasma desse tipo de cientificismo do final do Iluminismo: não podemos derivar um “dever ser” de um “ser”. A ciência nos dá um mapa e pode até traçar os melhores caminhos, mas não nos indica o destino.

Não estamos, portanto, tão longe, tão distantes ou alienados dos nossos detratores quanto imaginamos. A polarização de opiniões e a demonização do outro lado do debate são reflexos da nossa incapacidade de traduzir valores éticos diferentes dos nossos —que nos parecem sempre óbvios, únicos, até científicos. Mesmo que os proponentes de cada lado não articulem seu posicionamento desta forma —risco versus modo de vida— é isso que está em jogo.

A mãe natureza mais uma vez questiona onde vamos nos posicionar nesse espectro, e a ciência já nos dá base para responder, mas não nos passa a resposta. Emoldurar o debate de forma generosa aos nossos opositores é essencial: qualquer que seja a direção tomada, terá de ser coletiva.

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