Jorge Abrahão

Coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis.

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Jorge Abrahão

O que une o líder do submarino às lideranças políticas e empresariais?

Mesmo sabendo que o que está em jogo é a vida, dobram a aposta no resultado de curto prazo e na manutenção do poder, certos de que não serão cobrados pelos estragos que patrocinam

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Aos poucos tomamos conhecimento das decisões irresponsáveis do empresário da OceanGate, do submarino que implodiu na última semana, que considerava segurança um desperdício.

O tal "business plan", que os homens de negócios costumam usar para dar um toque de sofisticação a seus projetos, por medíocres que sejam, era fundamentalmente obter lucro a partir de uma chamada exótica: ver o Titanic no fundo do mar. Com tal estratégia de marketing, que habilmente toca nas carências afetivas do público-alvo, não foi difícil convencer um catado de milionários ansiosos por fazer parte de um seleto grupo que ganha o selo de aventureiro em uma sociedade que valoriza o risco. A busca pela glória e fama fácil encobriu a fragilidade do projeto e resultou em uma tragédia que correu o mundo.

Esse desdém ao risco não difere muito do comportamento dos empresários e políticos que desconsideram a urgência de ações que reduzam o impacto dos negócios que geram risco à vida em nossa nave mãe, a Terra. Aqui também considera-se segurança um desperdício. As lideranças econômicas e políticas fingem tomar decisões, mas na realidade não passam mais do que um verniz em suas ações. No mundo das empresas a sigla ESG é a senha. Na política, a Agenda 2030 foi a grande construção que, agora, por inação, corre o risco de ruir: transcorrida a metade do tempo da agenda, avançamos menos de 20% das metas previstas.

O submarino Titan debaixo d'água - OceanGate Expeditions/PA Wire

Nesse sentido, há um alinhamento entre os setores público e privado: anunciam avanços que, se efetivamente avaliados em relação às necessidades, são pífios. Sempre há honrosas exceções, que não são a regra. Não é por outro motivo que as emissões no mundo aumentaram desde o Acordo de Paris; a pobreza cresceu nos últimos anos e mais de um bilhão de pessoas passam fome; e a desigualdade só faz aumentar entre os países e dentro dos países, fruto de um modelo econômico que estimula a concentração de renda. Nunca é demais lembrar que desigualdade e mudança climática são irmãs siamesas: devem ser solucionadas conjuntamente.

Para avançarmos é urgente o debate de uma nova governança global, capaz de enfrentar os desafios atuais. Uma reforma da ONU, democratizando seus mecanismos de tomada de decisão, é uma necessidade diante da crise ambiental e social que vivemos. Não menos importante é debater a questão da inteligência arrtificial que, mais além de poder provocar 80 milhões de desempregados no mundo, é um enorme risco às democracias, dada a falta de regulamentação.

É neste contexto que as lideranças dos países ricos dão calote no fundo climático desde a sua criação, não cumprindo o compromisso de aporte de US$ 100 bilhões por ano para financiar a agenda do clima em países em desenvolvimento. O curioso é que, se não há recursos para o clima, sobram recursos para as guerras, ou para salvar bancos nos EUA e na Suíça. Para esses setores, surgem bilhões de dólares da noite para o dia, que levam décadas para chegar aos que passam fome, aos jovens, às mulheres e à agenda climática. Aquelas, portanto, são as reais prioridades de nossas lideranças. Desconsideram o humano, não olham para o longo prazo e apostam no risco.

O Brasil é um microcosmo do mundo que não foge à regra. É só observar as disputas em curso na reforma tributária, as mesmas de sempre: lideranças de setores econômicos pedindo isenções ou reduções de impostos, utilizando sua força política no Congresso para defender o interesse de poucos em detrimento da maioria da população. Essa é a roda da história que tem se repetido.

Para não dizer que não falei de flores, há pouquíssimas lideranças com uma visão mais assertiva do mundo. António Guterres, secretário-geral da ONU, é uma delas. Outras são o papa e Lula, que têm em comum agendas de preservação do meio ambiente, de combate às desigualdades, de valorização da democracia e de mudança da governança global. Neste caso, o futebol deixa de ser o eixo da relação entre Brasil e Argentina e é substituído por uma agenda muito mais importante, que tem a ver com vida digna, liberdade e preservação da vida humana.

Enquanto bilionários brincam de visitar o espaço ou as profundezas dos oceanos, usando o rompimento de barreiras tecnológicas como álibi para justificar suas carências afetivas e ganância financeira, nós, mortais, assistimos a esse bando de playboys em mídias acríticas, que valorizam essa estupidez humana e insistem em não relacionar essas alienações com as crises que vivemos.

O que une o líder do submarino às lideranças políticas e empresariais é, basicamente, um jeito de pensar e a irresponsabilidade com o futuro. Mesmo sabendo que o que está em jogo é a vida, dobram a aposta no resultado de curto prazo e na manutenção do poder, certos de que não serão cobrados pelos estragos que patrocinam. Que se danem as pessoas e as futuras gerações, é o que está por trás desse jeito de ser. Triste o mundo que pariu esse tipo de liderança que não nos dá alternativa. De vida.

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