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Vitória de 'Nomadland' é sintonia do Oscar com transe atual dos EUA

Ainda assim, escolha de 'Judas e o Messias Negro' representaria posição mais enfática sob o calor do Black Lives Matter

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Em janeiro de 2017, eu estava em San Francisco, na Califórnia, nos 50 anos do Verão do Amor, marco da contracultura e pontapé do movimento hippie. Entrevistei herdeiros daquele espírito, espalhados pela grama do Golden Gate Park, que renunciaram à ideia de se fixar num lugar para vagar pelo país, muitas vezes dormindo ao relento. Diziam que não eram "homeless", ou sem lar, mas apenas "houseless", sem teto.

Essa mesma distinção dá as caras em "Nomadland", longa de Chloé​​ Zhao que a Academia consagrou na noite de domingo com os prêmios de melhor filme, direção e atriz, para Frances McDormand.

A protagonista, uma viúva que mora num trailer e viaja pelos rincões do país em busca de trabalhos temporários, também diz que é "houseless", mas não "homeless", quando encontra uma antiga aluna.

A vitória de Zhao é celebrada, entre outros fatores, por ela se tratar da primeira diretora chinesa a faturar os principais prêmios, mas o seu filme é americaníssimo, porque aborda —e subverte— as tradições mais clássicas daquele cinema e porque toca em temas bastante específicos daquela sociedade.

Há um tanto de referências ao faroeste, gênero por excelência da produção dos Estados Unidos, naqueles planos todos muito abertos, naquelas paragens áridas e nos céus imensos com que Zhao se deleita. E também há um diálogo com o espírito libertário dos "road movies", em especial nos tipos que Fern, a personagem de McDormand, encontra pela estrada. E aí está a grande virada de chave, ainda que não exatamente inédita, do filme —a diretora põe a atriz para contracenar com não atores que estão interpretando a si mesmos, com seus próprios nomes e trajetórias, nas errâncias pelo interior.

"Nomandland", adaptado do livro-reportagem homônimo da jornalista Jessica Bruder, destrincha os efeitos de um fenômeno histórico sobre o qual o cinema ainda tratou de maneira bastante tímida se considerarmos as suas proporções, que é a crise econômica de 2008. Esfacelamento da relações de trabalho e compressão da classe média são alguns dos assuntos muito bem tangenciados pelo filme.

Os críticos mais ferrenhos do filme de Zhao argumentam que a diretora não explora as asperezas do trabalho de empacotador na Amazon —um dos muitos bicos a que Fern e os demais nômades se dedicam ao longo de parte do ano. Não é exatamente uma crítica justa, até porque as cenas daquela rotina robótica nos galpões imensos mostrados no filme não são exatamente idílicas.

O fato de "Nomadland" ter confirmado o seu favoritismo e saído como o grande vencedor do Oscar põe a Academia em sintonia com um país em transe, um tanto macerado, um tanto melancólico. Sua ode à vida desapegada e às vastidões do interior também têm algo de profético num mundo em que os grandes centros urbanos, revirados, já não são mais os mesmos com o fim da pandemia.

Ainda assim, é possível argumentar que a escolha de "Judas e o Messias Negro", provavelmente o melhor filme da safra, representaria uma tomada de posição mais enfática por parte da Academia sob o calor dos protestos do Black Lives Matter.

O longa do diretor Shaka King, que acabou levando apenas os prêmio de ator coadjuvante (para o hipnotizante Daniel Kaluuya) e melhor canção original, é a primeira obra produzida só por negros a ser indicada à principal categoria da noite. "Moonlight", dirigido por um cineasta negro e com um elenco exclusivamente negro, tinha brancos na produção.

Inspirado na história real de um infiltrado no grupo dos Panteras Negras que aceitou ser informante do FBI, "Judas e o Messias Negro" pode não ser uma das obras mais lapidadas da temporada, mas tem uma crueza, uma voltagem e uma urgência que fariam bem ao legado do Oscar —um elogio a uma causa social relevante sem descambar para o discurso pronto.

King faz bem em apostar nas zonas cinzentas da moralidade ao narrar a empreitada de Bill O'Neal, o informante vivido por Lakeith Stanfield, um personagem acossado entre a necessidade de salvar a própria pele e a atração pela luta de Fred Hampton, interpretado por Kaluuya. Ao adotar o ponto de vista do traidor, o filme só ganha em complexidade.

É o oposto, por exemplo, de "Bela Vingança", o grande logro desta safra. A obra dirigida por Emerald Fennell, que faturou o prêmio de roteiro original apesar de sua trama estapafúrdia e formulesca, tem falhas que vão muito além de seu final controverso. Conta a saga de uma mulher, interpretada por Carey Mulligan, que decide revidar em todos os homens do mundo o estupro sofrido pela amiga ao longo de uma narrativa tão superficial quanto um textão de Facebook.

Se a ideia era fazer um aceno às mais do que justas lutas do MeToo, então que a Academia tivesse ao menos se lembrado de indicar "Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre", outro filme dirigido e roteirizado por uma mulher, Eliza Hittman, e que versa sobre um assunto igualmente central no universo feminino, o aborto.

Ao contrário do engodo dirigido pela britânica Fennell, a obra da americana Hittman investe nas nuances da trajetória de uma adolescente que decide, com a ajuda da prima, viajar até uma clínica em Nova York onde interromperá a gravidez. Aqui, os homens que rodeiam a protagonista são igualmente boçais e perigosos, como os de "Bela Vingança", mas críveis, e não caricaturas.

Podemos argumentar que o tema de "Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre" seria um tanto espinhoso para ser abraçado pela Academia. Mas, então, o estupro seria mais palatável? O argumento, evidentemente, não se sustenta. A diferença é que em "Bela Vingança", o assunto é revestido com uma trilha sonora descolada e uma paleta de cores de saco de balinhas de urso.

"Mank" e "O Som do Silêncio", outros dois títulos que estavam no páreo de melhor filme, levaram prêmios técnicos e, merecidamente, não foram muito além disso. Diretor do primeiro, David Fincher é um tremendo cineasta e ainda não teve reconhecimento da Academia, mas à sua história sobre a era de ouro de Hollywood, um tanto injusta com a figura de Orson Welles, faltava o sentido de urgência num ano tão carregado quanto o que passou.

"Minari", a mais do que quadrada saga de imigrantes em busca do sonho americano, levou o único prêmio que a ele era justo, o de atriz coadjuvante para a sul-coreana Youn Yuh-jung.

E "Meu Pai", o cotista britânico da temporada, embora superior aos seus conterrâneos de outras edições, é ofuscado como filme pela monstruosa atuação de Anthony Hopkins no papel de um velho às voltas com a própria demência.

Já "Os 7 de Chicago", que saiu de mãos vazias, é uma peça de bom-mocismo, que encontra ressonância no progressismo de Hollywood graças à sua história sobre o julgamento arbitrário de manifestantes contra a Guerra do Vietnã. Mas como cinema não vai muito além da loquacidade de seu criador, Aaron Sorkin, grande roteirista que ainda não se provou um grande cineasta.

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