José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu jornalismo mídia

O feiticeiro, o aprendiz e a mídia

Trump candidato desafia jornalismo, que se confunde com Bolsonaro alijado

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O ex-presidente pode ser julgado durante a corrida eleitoral e pode ser eleito mesmo estando preso, repetem jornalistas mundo afora, muitos sem esconder um certo "Schadenfreude", a alegria de ver o outro se dar mal, diante da bizarra situação política do país mais poderoso do mundo, exemplo de democracia. Pelo menos até a página em que aparece seu nome: Donald Trump, o 45º presidente dos EUA, o primeiro a se tornar réu, três vezes, inclusive por tentar reverter a derrota nas urnas em 2020.

Trump, o golpista, precisa ser punido pelo infame 6 de Janeiro e pelos outros tantos crimes que coleciona. Trump, o candidato, não pode ser retirado da disputa eleitoral, pois aí sim a democracia americana estaria sob risco, dizem o próprio e, até aqui, boa parte dos republicanos e seus eleitores.

No meio disso tudo tem a mídia, que precisa equilibrar os pratos, os Trumps e um público em geral hostil a jornalistas. Em maio, a CNN apanhou feio ao realizar uma sabatina com o ex-presidente. A apresentadora foi achincalhada pelo público presente e pelo entrevistado por ter feito as perguntas difíceis. Para os críticos, prova cabal de que não se deve dar espaço para quem o ocupa de maneira deseducada e antidemocrática. A emissora, não sem razão, alegou o contrário, que é sim seu papel ouvir todos e até os piores.

Há também motivos menos nobres. Trump é um motor de audiência, dispensar sua presença em um debate ou entrevista não é decisão fácil. Canais a cabo nos EUA estão perdendo público. Analistas preveem fragmentação inédita da mídia americana na cobertura eleitoral de 2024, o que deve embananar prognósticos, pesquisas e prioridades.

No Brasil, onde Jair Bolsonaro emulou o quanto pode seu modelo americano, a versão candidato do ex-presidente parece enterrada. Em que pese ainda serem incertos os efeitos colaterais da celeridade da Justiça eleitoral, Bolsonaro faz força para ocupar o espaço de bússola da direita, talvez por não ter alternativa.

Na ilustração de Carvall, Trump e Bolsonaro, num plano fechado, se encaram. No fundo da imagem temos a presença de grades escuras.
Carvall

Antes da versão golpista voltar a campear, com o comércio paralelo de Rolex viabilizado com dinheiro público, uma nota da Folha no começo da semana reproduzia a linha tênue vivida pela mídia americana. Com o título "Nunes, Tarcísio e Bolsonaro almoçam para discutir cracolândia e eleições", a breve reportagem não ia muito além do enunciado, sem lembrar que o ícone do PL estava inelegível ou que vinha da "pior semana de todas", como descrito por O Globo, recheada de pix, pedras preciosas, os primeiros indícios de muamba e Carla Zambelli. Mais importante, como lembrou um comentário feito ao texto, sem ponderar qual seria sua expertise para discutir cracolândia.

É um risco naturalizar Bolsonaro, é um risco ignorá-lo e não é fácil abrir mão do que representa em termos de audiência. É um risco até tratá-lo apenas como um tosco, ainda que fartem evidências. Ser tosco é sua defesa, seu argumento. Jornalistas podem achar isso trivial, mas seus apoiadores o entenderão como legítimo, assim como os de Trump o fantasiam como um alto executivo.

Haja Rolex.

Adoráveis mulheres

"Não tenho tanto medo de morrer quanto tenho do obituário da Folha." Gregorio Duvivier fez piada, mas a verdade é que o jornal foi imolado na última semana por um enunciado absolutamente apelativo na cobertura da morte de Aracy Balabanian: "Atriz já fez aborto e não quis casar".

Nos últimos tempos, a Folha proporcionou momentos de polêmica nos obituários de Marília Mendonça, Glória Maria e Rita Lee, casos abordados pela coluna. Como observado por um leitor, todas mulheres.

Se nos episódios anteriores havia algum fiapo de pertinência, desta vez soou apenas gratuito, a ponto de ser retificado rapidamente. Uma coisa é a intimidade, sem relação direta com a atuação profissional do retratado, aparecer dentro de um texto de perfil; acaba absorvida em meio ao contexto. Outra, bem diferente, é estar solta em chamada de nota rasa, gerando mais ruído do que memória. Impressiona também a Folha não ter aprendido a lição de que qualquer título relacionado a um obituário é lido como o próprio na terra plana das redes sociais.

"Não há qualquer intenção de macular a memória da personagem. Tampouco considero que tenha havido um viés de discriminação de gênero a embasar a publicação, lembrando que é um assunto que diz respeito à vida da pessoa perfilada no obituário. A reportagem sobre a morte do diretor William Friedkin, por exemplo, publicada no mesmo dia, não deixou de ressaltar seu comportamento abusivo nos sets de filmagem, que o levou ao ostracismo em Hollywood", afirmou Silas Martí, editor de Cultura.

Este é o título sobre o personagem citado: "William Friedkin não era adorável, mas foi um grande diretor de cinema". Sorte não ter feito um aborto.

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