Comício na Sé, que completa 40 anos, selou frente ampla nas Diretas Já

Evento foi divisor de águas da campanha, que venceu resistências e construiu convergência rara na história brasileira

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Comício das Diretas Já na praça da Sé, em São Paulo Fernando Santos - 25.jan.84/Folhapress

Oscar Pilagallo

Jornalista, é autor de "História da Imprensa Paulista" (Três Estrelas) e "O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil" (Fósforo)

[RESUMO] O comício-monstro realizado na praça da Sé em 25 de janeiro de 1984, aniversário de São Paulo, cimentou o consenso de partidos e organizações da sociedade civil em defesa do voto direto para presidente, movimento decisivo para colocar o povo na equação do poder nos estertores da ditadura militar. A convergência não se refletiu na cobertura da imprensa, que variou da minimização do ato, pela TV Globo, ao engajamento intenso da Folha na campanha.

Mais tardio do que a memória da festa cívica do verão de 1984 faz supor, o consenso em torno da campanha das Diretas Já resultou de uma complexa construção política, social e midiática que teve no comício da praça da Sé, em 25 de janeiro daquele ano, um trampolim que projetou o país no ar ainda rarefeito da democracia.

Hoje, 40 anos depois, a lembrança das multidões tomando as ruas deixa a impressão de que, desde a mais remota origem do movimento, havia uma convergência de energia emanada da sociedade em defesa do voto direto para presidente da República, um direito suprimido pela ditadura militar instalada 20 anos antes. É uma impressão errada.

Comício das Diretas na praça da Sé, em São Paulo, em 1984 - Renato dos Anjos - 25.jan.84/Folhapress

Havia, claro, a perspectiva de que o processo de abertura política, que se arrastava entre avanços e recuos desde meados da década anterior, desembocasse na eleição direta do chefe do Executivo nacional. Afinal, após a volta da eleição dos governadores em fins de 1982, esse seria, naturalmente, o passo seguinte.

O projeto que reintroduziria o pleito, no entanto, foi recebido com indiferença. Quando o deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT) obteve as assinaturas necessárias de parlamentares para submeter a emenda ao Congresso —em 2 de março de 1983, no primeiro dia de trabalho da nova legislatura—, o feito do peemedebista estreante na Câmara mal foi noticiado pela imprensa.

Na época, a estratégia da esquerda —sobretudo do recém-fundado PT e de parte do PMDB, que crescera como oposição durante a ditadura— focava a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que varreria o "entulho autoritário", aquele conjunto de leis, decretos, normas e atos institucionais baixados nos anos anteriores sem respaldo popular. No primeiro semestre de 1983, a perspectiva de sair às ruas para exigir eleições diretas não figurava no alto da agenda de reivindicações dos partidos de oposição.

Raciocinava-se, nesse campo, que a eleição, embora bem-vinda, não resolveria os problemas sociais históricos, como a má distribuição da renda, agravados pelo desemprego e pela recessão. A visão marxista dominante na esquerda privilegiava a análise econômica sobre o jogo político. Era mais importante mexer nas estruturas sociais, via Constituinte, que no calendário eleitoral, via Diretas Já.

Tal entendimento não estava restrito à esquerda e se estendia ao centro do espectro ideológico. "Nossa ideologia é a Constituinte", discursou Ulysses Guimarães, então presidente do PMDB, no mesmo dia em que Dante de Oliveira, seu afilhado, apresentava a proposta das Diretas.

Foi só aos poucos e pelas beiradas que a pauta passou a sensibilizar os partidos de oposição. Depois de um tempo hibernando em uma comissão da bancada do PMDB na Câmara, a proposta começou a ganhar adeptos no próprio partido.

Entre os caciques, o próprio Ulysses teve papel decisivo. Sem recuar publicamente da ideia da Constituinte, agregou a defesa das Diretas, que logo passaria a ser sua prioridade. Afinal, os dois objetivos, independentemente da ordem em que fossem alcançados, levariam à redemocratização.

Com o prestígio de ser o principal líder da oposição, Ulysses formalizou em fins de maio, três meses após o anúncio da proposta de Dante de Oliveira, um acordo com o petista Luiz Inácio Lula da Silva, a grande novidade da política no início dos anos 1980, para atuarem juntos em uma campanha nacional a favor das Diretas.

Ambos tinham poder de mobilização popular, mas não dispunham de máquinas administrativas capazes de financiar os megacomícios que poderiam inverter a relação de forças no Congresso e aprovar as Diretas. Para tanto, precisavam do empenho dos governadores de oposição ao governo federal, que cumpriam o primeiro mandato em meio a dificuldades crescentes derivadas da aguda crise econômica.

A ajuda oficial demorou, mas saiu. Quase oito meses depois da proposta de Dante, esses governadores selaram, em reunião em Foz do Iguaçu (PR), o compromisso de dar apoio material à campanha. Entre os chefes dos executivos estaduais, destacavam-se Franco Montoro, de São Paulo, Tancredo Neves, de Minas Gerais, e o anfitrião José Richa, do Paraná.

A fruta das Diretas Já estava madura, mas ninguém a colhia. São Paulo fez uma primeira tentativa frustrada em fins de novembro. O que era para ser um evento suprapartidário se restringiu a um comício petista esvaziado, em frente ao estádio do Pacaembu, em que Montoro não se sentiu à vontade para comparecer.

Na hesitação de São Paulo, a primazia coube ao Paraná, que realizou em meados de janeiro o primeiro megacomício, já nos moldes que mais tarde seriam multiplicados e aperfeiçoados país afora, com a convocação maciça da população, palcos gigantescos e potentes sistemas de som. Na Boca Maldita, no centro de Curitiba, um número estimado de 50 mil manifestantes engrossou o coro pelas Diretas Já.

O sucesso do comício no estado vizinho animou Montoro. Um comitê executivo com representantes de partidos e de dezenas de entidades da sociedade civil projetou para o feriado de 25 de janeiro, aniversário da cidade, o que seria o primeiro comício-monstro, aqueles com mais de 100 mil pessoas. No fim, cravou-se a presença de uma multidão de 300 mil, um número superestimado, como se confirmaria mais tarde.

Mas o inchaço da estatística, comum a todos os outros comícios, não diminui a relevância histórica do evento. Como disse Ulysses no palanque, são os 130 milhões de brasileiros —a população da época— que estão na praça.

Nas reuniões preparatórias, o Executivo paulista contou com Jorge da Cunha Lima, secretário das Comunicações de Montoro. Como o governador, era um quadro saído das fileiras do movimento católico progressista, com bom trânsito entre artistas e intelectuais. No PT, a tarefa coube a José Dirceu, secretário do partido no estado. Ex-militante da luta armada, era uma das estrelas em ascensão na legenda.

Além dos partidos, o apoio veio de todos os lados. O cardeal dom Paulo Evaristo Arns, com tradição na luta pela democracia, convocou os católicos. Os chefes das torcidas organizadas dos maiores times do futebol paulista entraram em campo estimulando os torcedores a irem à praça. Os dirigentes da União Estadual dos Estudantes incumbiram universitários de distribuir o farto material de propaganda produzido pelo governo do estado.

Montoro não economizou. Cartazes e panfletos se contavam aos milhões, com a mensagem política enfatizada em 600 outdoors. Rádios e TVs veicularam anúncios pagos. As catracas do metrô foram liberadas. Prefeitos de cidades do interior providenciaram numerosas comitivas que chegaram à capital em ônibus fretados. Venderam-se milhares de camisetas amarelas, com a frase "Eu quero votar pra presidente" estampada e a renda revertida para a campanha. Isso, no entanto, cobria apenas uma parte ínfima dos gastos.

A maior parte do dinheiro vinha dos cofres públicos, o que levou o governo militar a denunciar o uso da máquina pública a serviço do partido. Embora a crítica tenha sido encampada pela imprensa mais refratária à campanha, prevaleceu a percepção de que a defesa da democracia era um fim nobre para os recursos obtidos com os impostos. A força moral da reivindicação cobria de legitimidade a ação do governo estadual.

O comício consolidou Osmar Santos como apresentador oficial da campanha. Tendo estreado na função em Curitiba, duas semanas antes, o mais popular locutor esportivo do país dominava a cena. "Diretas quando?", ele perguntava ao microfone. "Já!", a multidão respondia. E assim se fixou, nas duas palavras justapostas, o nome da campanha: Diretas Já. Apesar de próximo do PMDB —havia participado da campanha de Montoro em 1982—, Osmar Santos ajudou a garantir o clima suprapartidário do comício.

O palanque era também palco. Na abertura, Moraes Moreira finalmente cantou o aguardado "Frevo das Diretas", com letra do poeta Paulo Leminski: "Se a meta é a democracia/ Se a democracia é a meta/ Eleição é direta/ Eleição é direta/ Eleição é direta".

Composta com antecedência, a marchinha contagiante não chegou a ser apresentada na Boca Maldita por não ter sido liberada a tempo pela censura. Em São Paulo, fez sucesso, embora não tenha realizado seu potencial de se tornar o hino das Diretas. Talvez por não ter sido gravada em disco, o que limitou suas possibilidades de reprodução. Talvez porque a concorrência fosse muito forte.

A trilha sonora das Diretas ficou a cargo de Chico Buarque e, principalmente, de Milton Nascimento, dois dos muitos artistas que emprestaram seu prestígio pessoal à causa democrática. Na Sé, Chico entoou, sem acompanhamento, "Apesar de Você", música de protesto da década anterior cuja letra continuava pertinente. Quanto a Milton, também presente na praça, emplacaria "Coração de Estudante", "Nos Bailes da Vida" e a infalível "Menestrel das Alagoas" durante os três meses da campanha.

O menestrel do título da canção de Milton e Fernando Brant é o senador peemedebista Teotônio Vilela, um inspirador das Diretas, que em 1983 defendia a redemocratização enquanto enfrentava um câncer devastador. Morrera havia dois meses, no mesmo dia em que a campanha iniciou o trabalho de parto, no comício do Pacaembu.

Desde então, era reverenciado como mártir da democracia. Sua imagem pairava no ar em balões infláveis, multiplicava-se em camisetas no icônico desenho do cartunista Henfil, que o retratou brandindo a bengala de bambu sob o slogan da campanha, e era saudada na voz de Fafá de Belém.

Presença obrigatória nos maiores comícios, aquela que seria chamada de "musa das Diretas" estreou na campanha na praça da Sé. Não estivera em Curitiba por falta de convite do PMDB. Aliás, se dependesse do partido, também não subiria no palanque em São Paulo. Fafá de Belém conta que só acabou participando por insistência de Lula, de quem era próxima. Os dois foram juntos ao evento, ela com a caixinha em que levava uma pomba branca que voaria no clímax de sua apresentação —uma marca registrada das Diretas.

Mais aplaudido que seus pares, Lula teve o mérito de contribuir decisivamente para o caráter suprapartidário do comício. Quando Montoro se preparava para discursar, a claque petista ensaiou uma vaia, mas foi logo enquadrada pelo líder, e o governador terminou ovacionado.

Outros peemedebistas de peso, como o senador e futuro presidente Fernando Henrique Cardoso, tiveram direito aos três minutos combinados sem serem importunados. Com a superação do sectarismo que sublinhara a festa petista do Pacaembu, o comício da Sé selou a natureza de frente ampla das Diretas.

O consenso na praça, no entanto, não se refletiu nos telejornais da noite nem nos jornais do dia seguinte. A cobertura jornalística do megacomício estabeleceu uma nítida clivagem na imprensa. De um lado, os veículos entusiastas da campanha, com a Folha à frente; de outro, os críticos da iniciativa.

O dissenso já podia ser percebido desde fins de 1983, pelo tratamento dispensado aos comícios anteriores. No noticiário sobre o comício-monstro da praça da Sé, a divisão apenas foi explicitada pela própria magnitude que a campanha atingira, não podendo mais ser simplesmente ignorada.

Por sua óbvia importância e por seu histórico de alinhamento com o governo militar, o Jornal Nacional, da TV Globo, foi o alvo favorito das críticas dos manifestantes.

Na primeira vez que abordou a pauta em nível nacional, o jornal televisivo de maior audiência do país, na escalada de manchetes, descreveu o ato político como um show musical por ocasião do aniversário da cidade. Na reportagem que se seguiu, a razão de ser do comício só é mencionada brevemente, como se fosse mais um item de uma solenidade municipal. "O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo", cantava-se nas praças.

Na outra ponta da política editorial, a TV Bandeirantes decidiu transmitir ao vivo imagens do comício em seu jornal de âmbito nacional. A opção teve um preço alto.

Na sequência, o dono da emissora, João Saad, foi chamado ao gabinete do presidente da República. O empresário se preparava para ter uma emissora em Brasília. Com a documentação em mãos, aguardava apenas a assinatura de João Figueiredo. Em represália pela atitude da Bandeirantes, o presidente, conhecido por seus rompantes, rasgou o decreto em meio à audiência.

TVs e rádios, por serem concessões públicas, estão mais sujeitas a pressões de governos. No caso de um governo autoritário, a ameaça é potencializada.

Executivos da Globo relataram advertências oriundas do meio militar para que a emissora minimizasse a importância dos atos públicos a favor das Diretas. No auge da campanha, quando a rede embarcou em uma cobertura entusiasmada das manifestações, Roberto Marinho, dono da Globo, testemunhou um helicóptero militar pairando de maneira inequivocamente intimidadora a poucos metros de sua sala.

No dia seguinte, os principais jornais com sede em São Paulo, a Folha e O Estado de S. Paulo, saíram com destaques que refletiam leituras divergentes sobre o momento político. O Estadão deu uma manchete discreta e privilegiou uma declaração de Tancredo: "A radicalização já está nas ruas". O governador mineiro não havia comparecido ao comício —recepcionava Figueiredo em Belo Horizonte. Previu "consequências desastrosas" do processo, o que coincidia com a posição do jornal.

Comício das Diretas Já, na praça da Sé, em São Paulo - Fernando Santos - 25.jan.84/Folhapress

Criticar as Diretas Já não significava, no caso da imprensa, ser contra a redemocratização. A divergência se restringia ao caminho para se chegar ao mesmo objetivo: o fim da ditadura.

Não faltavam argumentos consistentes aos que se opunham aos rumos da campanha. Temia-se um eventual retrocesso na abertura política, caso o governo cedesse aos militares ligados à repressão, que receavam o que entendiam como revanchismo. Acreditava-se também que tal risco não valia a pena, dada a pequena chance de a emenda Dante de Oliveira ser aprovada pelo Congresso.

A Folha, em linha diametralmente oposta, fazia intensa campanha pró-Diretas desde os preparativos do comício do Pacaembu. Por decisão do publisher, Octavio Frias de Oliveira, que acatou sugestão de seu filho e futuro diretor de Redação, Otavio Frias Filho, o jornal estimulava o movimento, a ponto de se confundir com ele. Ricardo Kotscho, repórter veterano que também sugerira que o jornal se engajasse na campanha, deu o tom do noticiário com uma narrativa que, com frequência, beirava o ufanismo.

Ao longo daquele verão agitado, a Folha convocou a população às ruas, cobrou o compromisso dos políticos de oposição, criticou ambiguidades de seus líderes, denunciou a proeminência de ambições pessoais e, desafiando a aritmética da política partidária, continuou acreditando na possibilidade remota de reverter a tendência do Congresso.

O comício-monstro da praça da Sé foi um divisor de águas das Diretas Já. A partir de 25 de janeiro de 1984, seria impossível ignorar a mensagem das ruas. Aos poucos, foi sendo vencida a resistência dos setores mais refratários da imprensa e da política partidária (inclusive no partido governista), e, na reta final da campanha, o país testemunhou uma rara convergência em sua história.

Como se sabe, a exuberância e o vigor das Diretas não foram suficientes para aprovar a emenda. A tática do governo —que incluiu a censura prévia ao rádio e à TV e o cerco a Brasília, para proteger a imagem de parlamentares contrários às Diretas— impediu que se formasse a maioria necessária na Câmara.

Na votação de 25 de abril, embora 298 deputados tenham cravado "sim", faltaram 22 votos para a aprovação, uma margem muito mais estreita do que se imaginava meses antes. A derrota, no entanto, abriu espaço para que um candidato de oposição, Tancredo Neves, derrotasse o governista Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, pondo fim à ditadura militar.

O comício da Sé teve o mérito de galvanizar um desejo da população, sem o que o desfecho da ditadura militar poderia ter dependido apenas de acordos intramuros. Se o ciclo autoritário provavelmente terminaria em breve com ou sem Diretas Já, pois se encontrava em seus estertores, a campanha foi decisiva para colocar o povo na equação do poder.

Parabéns, Sampa!

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