Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Descrição de chapéu aborto

Annie Ernaux oferece a própria vida para politizar dores de mulheres

Ao narrar aborto em 'O Acontecimento', a autora nos dá a esperança de que é possível dobrar os hipócritas

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Caduco país, este nosso. No fim da tarde do último sábado, terminei a dolorosa leitura do livro "O Acontecimento", de Annie Ernaux, vencedora do Nobel de Literatura de 2022. E pensei: o que para uma francesa é um relato histórico, coisa do passado, para nós, brasileiras, trata-se do tempo presente. Enquanto escrevo esta coluna, aliás, deve haver alguma amiga ou filha de amiga percorrendo semelhante calvário.

Quando Ernaux decidiu contar sua experiência de interromper uma gravidez não desejada, no fim dos anos 1990, o aborto já tinha sido legalizado na França havia um quarto de século. Aquela seria uma história sobre o silêncio: "Escrevi ‘O Acontecimento’ para preservar a memória da selvageria infligida a milhões de meninas e mulheres", disse ela numa entrevista ao jornal The Guardian. Na sua opinião, o que aconteceu não podia seguir cercado pelo "véu do sigilo".

Annie Ernaux durante conferência em Nova York - Andrea Renault - 10.out.22/AFP

O silêncio! Em abril, no decolar da campanha eleitoral, ele, o silêncio, fora imposto a Lula. Até progressistas se levantaram para condenar a gafe do então candidato do PT. Não era hora de falar de aborto. Talvez não fosse. Mas o problema que nunca o é, verdade seja dita. Lula só dissera o óbvio, que o aborto "deveria ser transformado numa questão de saúde pública e todo o mundo ter direito e não ter vergonha".

Na ocasião, também arriscara outra verdade —ou meia verdade: mulheres pobres correm o risco de morrer ao tentar abortos caseiros, "madame pode fazer aborto em Paris ou ir para Berlim procurar uma clínica boa".

Bem... quem tem dinheiro para pagar não precisa ir à Europa, caro presidente. Com disposição para a inquirição clandestina e envergonhada, encontram-se clínicas cinco estrelas aqui mesmo. Porém: a violência, a humilhação, a dissimulação, o constrangimento... são sentimentos que, se de forma alguma nos iguala, nos aproxima.

Densa solidão

Em "O Acontecimento", Ernaux nos conduz pela saga de uma jovem estudante para encontrar na França de 1963 um "faiseuse d’anges". A propósito, só a expressão, "fazedor de anjos", já traduz o estigma que a acompanharia na busca desesperada.

De um lado, a família profundamente católica e conservadora. Do outro, um sistema que mandaria para a cadeia qualquer um que a ajudasse, até mesmo uma amiga que se dispusesse a lhe fornecer informações.

"Estava totalmente decidida a abortar. Isso me parecia, senão fácil, pelo menos realizável, e não exigia nenhuma coragem em especial. Uma provação corriqueira. Bastava seguir o caminho trilhado por uma longa coorte de mulheres antes de mim."

Com a escrita contida, quase distante, Ernaux vai adentrando aquela densa solidão: "Eu estabelecia confusamente uma ligação entre a minha classe social de origem e o que estava acontecendo comigo".

Como a primeira a fazer um curso superior numa família de operários, escapara ao chão da fábrica. Mas não à "transmissão de uma pobreza da qual a filha grávida era, da mesma forma que o alcoólatra, o emblema. Eu estava ferrada, e o que crescia em mim era, de certa maneira, o fracasso social."

Eu não conhecia Annie Earnaux até o Nobel. De lá para cá, li dois de seus livros, "O Lugar" e "O Acontecimento". De certa forma, os cenários que ela traz me são familiares. Com um namorado parisiense, morei um bom tempo —ou tempo suficiente— num recanto campesino do sul da França, em que as feiras de sábado pareciam páginas de Flaubert. Para assumir essa voz radical e transgressiva, consigo imaginar a sua travessia. Fora de Paris, até hoje, o francês é tão conservador quanto um mineiro.

Talvez seja esta, aliás, a descoberta de Ernaux: encontrar no íntimo, no indizível, no regional, o universal. O mais comovente na obra dela, para mim, é justamente oferecer a própria vida, as próprias dores, para nos dar voz.

Em "O Acontecimento", o estilo intransigente se põe inteiro a serviço da politização dessa dor que não é só dela. Escrevendo do ponto de vista de cidadã de um país que enfrentou a hipocrisia, a autora nos dá esperança de que é possível dobrar os hipócritas. Mas, para isto, seria preciso encará-los.

"Talvez o verdadeiro propósito da minha vida seja que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita. Em outras palavras, algo inteligível e universal, fazendo com que minha existência se funda na vida e na cabeça de outras pessoas."

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