Uma semana antes do último Natal, um séquito de SUVs chegou a um posto de saúde do abastado distrito de Oxfordshire, a 90 km de Londres. Estava na hora de fechar o posto, mas uma exceção foi aberta para um homem idoso. Protegido por seguranças, ele foi tomar a vacina contra o coronavírus, depois de garantir que a cena não seria documentada por celulares.
Na segunda-feira (15), uma audiência de TV estimada em 4,3 milhões só nos Estados Unidos foi servida com ataques à segurança e à eficácia das vacinas. O autor do comentário foi escolhido pessoalmente pelo homem idoso para comandar um dos mais populares programas do cabo americano.
O mentiroso serial é o âncora de telejornal Tucker Carlson, e seu protetor vacinado, o bilionário Rupert Murdoch, 90, fundador e chairman da Fox News.
Carlson foi apelidado por um crítico de mídia de o “novo Trump”, já que o original foi silenciado pelos donos de Twitter, Facebook e YouTube. Tudo o que Carlson diz no ar, desinformando sobre a pandemia ou fabricando fatos para reforçar argumentos racistas, é protegido pela Primeira Emenda da Constituição americana. Ela garante a liberdade de imprensa e de expressão, a liberdade religiosa e de fazer assembleias.
Em setembro passado, um juiz federal recusou uma ação legal por difamação contra Carlson atendendo a um peculiar argumento dos advogados da Fox: o espectador não deve acreditar nele. O que Carlson informa no ar não é fato, concluiu o juiz, é “comentário não literal”.
Desde que a Primeira Emenda foi adotada, em 1791, ela enfrentou testes na Justiça, mas a combinação de redes sociais, Donald Trump e a mídia de ultradireita ofereceu novos desafios potentes. Juristas americanos têm se dividido entre os puristas que consideram a emenda um pilar democrático intocável e os que questionam se ela está minando a democracia.
O debate sobre o que constitui censura foi aceso antes da emergência das redes sociais, quando a democrática internet permitiu assédio online e disseminação de conspirações e facilitou o ensino da fabricação de explosivos em casa.
A visão da emenda antes da internet era concentrada na proteção contra o autoritarismo e a supressão de dissidência. Para exercer seus direitos, o cidadão deve ter acesso irrestrito à informação. E se o ecossistema de informação torna-se um adversário do exercício de direitos democráticos?
Como proteger a liberdade e, ao mesmo tempo, a propagação viral, potencializada por algoritmos, de informações que levam a doença e morte, como as de que a Covid-19 é só uma gripe, cloroquina é tratamento e se amontoar em festas não é risco?
Como proteger a democracia que começou com a adoção da Primeira Emenda se 47% dos 74 milhões que votaram em Donald Trump, em novembro passado, declaram que não pretendem se vacinar?
Banir Trump das redes sociais foi um recurso radical adotado pelo oligopólio do Vale do Silício. São empresas que passaram anos sem admitir a terra arrasada que criaram, com assassinatos em massa instigados pelo Facebook em Mianmar e trolls russos convocando protestos raciais em cidades americanas, na operação de interferência na eleição presidencial de 2016.
A Primeira Emenda, redigida com pena e tinta à luz de velas, protege valores imutáveis de liberdade. Mas cresce, nos EUA, o debate sobre como proteger os mesmos valores à luz da tecnologia do século 21.
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