Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Não vejo a hora de ser normal mulher narrando futebol', diz Renata Silveira

Locutora revela que recebe ataques nas redes sociais todos os dias e fala da responsabilidade de ser uma referência

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A narradora Renata Silveira

A narradora Renata Silveira João Miguel Júnior/Globo

A locutora Renata Silveira ostenta muitos pioneirismos. Em 2014, foi a primeira mulher a narrar um jogo de Copa do Mundo no Brasil, na época pela Rádio Globo. Foi também a primeira voz feminina a narrar uma disputa da seleção brasileira em olimpíadas (Tóquio, 2020). E, no ano passado, estreou como a primeira mulher narrando um jogo masculino da Copa, em TV aberta.

"Não vejo a hora de daqui a pouco ser normal e não ter mais essa coisa de primeira isso, primeira aquilo", diz ela à coluna. "Quem dera que outras mulheres já tivessem feito isso anteriormente, que eu fosse só mais uma chegando, sem peso, sem tanta cobrança", prossegue Renata.

O "lado bonito" de estar neste lugar, afirma ela, é poder ser uma referência para que outras meninas possam se sentir inseridas no mundo do futebol.

Renata conta que virou locutora por acaso. Muito fã de esportes desde a infância, cursou faculdade de educação física. Depois, decidiu fazer pós em jornalismo esportivo, pensando que poderia ser apresentadora. Em 2014, sem conseguir trabalho na área, ela soube de um concurso na Rádio Globo que buscava narradoras mulheres.

Resolveu se inscrever achando que "ia dar errado", mas que poderia ser uma oportunidade de, talvez, conseguir uma vaga de repórter. "Nunca imaginei que ia sair de lá narradora. Achava dificílimo", relata.

Renata ganhou o concurso, mas a carreira não deslanchou. Como não foi contratada pela emissora, ela acabou se dedicando a outra paixão: a dança. Montou com a irmã e o marido uma escola da modalidade no Rio de Janeiro que funciona até hoje —e onde ela passa os seus momentos de folga da TV.

Em 2018, voltou a narrar após passar por um outro concurso, desta vez nos canais Fox Sports e Esporte Interativo. De lá para cá, não parou mais. Em 2021 foi contratada pelo Grupo Globo e passou a ser conhecida em todo o Brasil.

Agora, Renata se prepara para mais um desafio. Ela vai narrar pela Globo a Copa do Mundo de futebol feminino, que começa no próximo dia 20 e será disputada na Austrália e na Nova Zelândia.

Em conversa de pouco mais de uma hora com a coluna, a locutora falou sobre o jogo mais difícil que já narrou, os ataques que recebe diariamente nas redes sociais, uma agressão verbal que sofreu no estádio e as agruras que o futebol feminino ainda enfrenta no Brasil.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

MACHISMO

Recebo ataques nas redes sociais todos os dias. Infelizmente, eu já entendi que faz parte.

Não gostar, está tudo certo. Tem vários narradores de quem a galera não gosta. O problema não é esse. Se não gosta da minha transmissão, não gosta da minha voz, não gosta do jeito que eu narro, está tudo certo. A gente sabe que não vai ser unanimidade.

A questão são as ofensas. É isso que é realmente pesado. Os homens narradores recebem ofensas também. Só que existem situações em que fica muito claro que é por machismo, que a pessoa fala 'voz de mulher não combina com o futebol', 'mulher não entende de futebol'.

O homem, quando ele erra, é porque se confundiu ou é até engraçado. Vai a mulher perder o gol, vai a mulher errar o nome do jogador, vai a mulher dar uma informação errada. É desproporcional. As mensagens são desproporcionais quando a gente fala dos ataques que a gente sofre.

É isso, faz parte e tem que ser forte mesmo para saber atravessar. Eu acho até que lido bem de bloquear, excluir e seguir em frente.

EXEMPLO

Eu sempre brinco porque toda hora estou sendo a primeira mulher a fazer alguma coisa. E é uma adrenalina no corpo, porque é um momento tenso de ter que ir lá e ser a primeira.

Não vejo a hora de daqui a pouco ser normal e não ter mais essa coisa de primeira isso, primeira aquilo. Quem dera que outras mulheres já tivessem feito isso anteriormente, que eu fosse só mais uma chegando, sem peso, sem tanta cobrança.

Cobrança até interna mesmo, porque a gente fica com uma responsabilidade, um nervosismo, uma ansiedade para fazer bem aquilo ali.

Tirando toda essa parte de responsabilidade e nervosismo, a representatividade é a parte mais bonita de tudo isso. Na Copa do Mundo do ano passado, passei a entender melhor a minha função.

Antes eu achava que era uma coisa assim: 'Ah, porque eu vou inspirar outras mulheres a trabalharem com futebol, mostrar que mulher também narra e tal'.

Mas é muito maior que isso. A gente está falando sobre a menina se sentir inserida dentro do mundo do futebol, independentemente se ela vai querer trabalhar com futebol ou não. Mas de ela me ver, de ver a Ana Thaís Matos comentando, e questionar o pai que só leva o seu irmão mais velho ao estádio: 'Olha só, pai, eu também quero gostar de futebol'.

Por muitos anos, o futebol excluiu as mulheres. A gente foi proibida lá nos anos 1940. E, se a gente fala das diferenças hoje do futebol feminino e do masculino, a história mostra o porquê de tanta desigualdade.

A gente vai crescendo sem ter esse estímulo de gostar de futebol. Eu tive a sorte de na minha família ser totalmente diferente. O meu pai sempre levou eu e a minha irmã ao Maracanã. Eu cresci achando que isso é normal, mas sei que não é essa a realidade.

POSICIONAMENTO

O futebol não é uma bolha. Ele apresenta causas importantíssimas o tempo inteiro. Foi o caso do Cuca. [Em suas redes sociais, Renata se manifestou contra a contratação do treinador pelo Corinthians, em abril deste ano. Em 1987, quando era jogador do Grêmio, Cuca foi detido ao lado de três companheiros na Suíça em um caso de violência sexual. Julgado e condenado, não chegou a cumprir a pena estipulada para o crime, que prescreveu].

No caso recente de racismo do Vinicius Junior, parei para pensar: eu, como referência, como devo me posicionar e falar sobre isso?

Fui cobrar as entidades, a Fifa e os clubes. E não é só falar quando isso acontece. É o tempo todo você estar envolvido naquela causa.

No caso Cuca, as pessoas falam: 'Ah, mas por que vocês estão falando sobre isso só agora?'

Ainda bem que estamos falando sobre isso agora, porque antigamente as pessoas não falavam. Era um tabu. Que bom que a gente pode falar sobre isso, que bom que a gente pode mudar a sociedade, que a gente pode fazer com que as pessoas enxerguem de outra forma.

E não é que é uma obrigação minha me posicionar. Mas eu sinto essa responsabilidade.

AGRESSÃO NO ESTÁDIO

Já sofri agressão como torcedora. Foi há muito tempo, em 2010. Eu estava com a minha irmã e desceram dois caras da torcida organizada e pararam na nossa frente. Eles não estavam vendo o jogo, estavam discutindo alguma coisa e bem embriagados.

Primeiro, a gente ficou tentando desviar para conseguir ver o jogo. Só que não estava dando certo, e eu de forma educada pedi para eles darem licença.

E aí começou um bate-boca, um estresse. Foi uma situação bem tensa, porque eu olhava para o lado e ninguém fazia nada. O cara gritava com a gente de uma forma! Só faltou ele nos agredir fisicamente, porque agressão verbal, ele falou todas que você possa imaginar.

Até que um cara da torcida desceu e retirou eles. Eu caí no choro. Tenho certeza de que, se eu fosse um homem, ele não teria falado a metade das coisas que falou.

Fiquei mal depois daquele dia. Acho que foi a primeira vez que o futebol tentou me excluir de uma certa forma. Ali, eu senti o machismo.

TRANSMISSÃO MAIS DIFÍCIL

A partida mais difícil que eu já narrei foi em 2021, na Eurocopa, Dinamarca contra a Finlândia, quando o Christian Eriksen teve uma parada cardíaca em campo. Porque jogo a gente se prepara, estuda. Mas a gente não estuda para narrar alguém ressuscitando, um jogador quase morrendo. [O meia dinamarquês caiu repentinamente em campo. Ele foi reanimado, encaminhado a um hospital e voltou a jogar oito meses depois].

Foi bem tenso, bem difícil. Nos primeiros minutos depois do ocorrido, eu busquei ter o controle da emoção. Você sente a voz embargada, o olho encheu de lágrima.

Quando entendemos que era grave, ia demorar e íamos ficar no ar, aparecendo no vídeo, eu pensei: agora eu tenho que ficar plena, eu tenho que ter postura. Enxuga as lágrimas, segura a voz e vamos embora. Deu tudo certo, graças a Deus.

Depois disso, eu recebi muitas mensagens do tipo: 'Passei a te respeitar depois desse jogo, passei a gostar do seu trabalho depois desse jogo'.

É muito mais do que ter conseguido narrar aquela tragédia. É mostrar pra muita gente que duvidava que eu era capaz de estar ali, que eu posso até narrar tragédia.

E eu tinha pouco tempo de Globo. Estreei em março de 2021, e isso foi em junho.

Tinha muita gente ali torcendo o nariz. Quando eu falo de muita gente, falo de sociedade, falo de outros narradores, de imprensa, de todo mundo duvidando: 'Mulher narrando, será que isso vai dar certo? A Globo nunca teve uma narradora'. E depois disseram: 'Olha só o que ela fez. O cara quase morreu em campo, ela ficou no ar, segurou a transmissão.'

CRESCIMENTO DO FUTEBOL FEMININO

O futebol feminino está avançando. A gente sabe que precisa de muito mais. Recentemente, o Real Ariquemes não entrou em campo porque as meninas estavam com os salários atrasados (como protesto, as jogadoras do time de Rondônia se recusaram a deixar o vestiário para a partida contra o Santos, no dia 12 de junho, pelo Campeonato Brasileiro).

E estamos falando de série A. São coisas que não eram para acontecer, mas são histórias que a gente ainda conta de situações tristes. Não é todo mundo que tem uma estrutura como Corinthians, Flamengo, Palmeiras, Santos. A realidade da maioria é muito difícil ainda, mas estamos evoluindo.

COPA DO MUNDO FEMININA

A expectativa está enorme, estou muito empolgada. Vai ser a minha primeira Copa do Mundo feminina. E o Brasil nesses últimos jogos empolgou a gente. Acho que vamos fazer jogos bem competitivos, de igual pra igual com outras seleções.

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