Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade lei de zoneamento

85 decibéis: quem dormirá com o barulho que Nunes e a Câmara querem autorizar em SP

Aumento do limite inserido em 'jabuti' trará danos irreparáveis aos vizinhos de locais como o Allianz Parque

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Às 22h30 de sábado (12), as janelas e os móveis dos apartamentos do entorno do Allianz Parque, em Perdizes, na zona oeste de São Paulo, vibravam ao som de cerca de 78 decibéis (db) do The Killers. O nome da banda não poderia ser mais apropriado para aquela noite: eles eram os matadores da saúde dos paulistanos que vivem naquela região.

O tormento começou às 14h, quando a banda Fresno, primeira das cinco que se apresentaram, iniciou seu show. Às 17h43, uma moradora pediu para a Real Arenas, empresa que promove os shows, abaixar o som: "Estou atordoada, isso vai até as 23h e a última banda é mais pauleira". O evento só terminou às 23h30.

Às 20h23, quando se apresentava a banda Hot Chip, uma moradora do edifício Córsega (na r. Palestra Itália, 255) escreveu no WhatsApp dos vizinhos: "Sentimos nosso prédio balançar". Outro morador confirmou: "Nunca senti esse nível de trepidação. As portas de correr do armário estão batendo". Uma terceira disse: "O monitor do computador está balançando".

Vista aérea do estádio, cercado por prédios e casas
Allianz Parque, estádio que abriga jogos do Palmeiras, shows e uma série de atrações inusitadas - Divulgação

Os 78 db, medidos em um celular situado em um apartamento, embora causem incômodos insuportáveis, estão em nível inferiores ao limite de 85 db que o prefeito Ricardo Nunes (MDB) inseriu, como um "jabuti", no parágrafo 2º do artigo 13º do substitutivo ao projeto de lei de regulamentação das "dark kitchens". O prefeito quer que esse nível de ruído seja autorizado em toda a cidade.

A regra, aprovada em primeira votação pela Câmara Municipal na última semana, altera a Lei de Uso e Ocupação do Solo (16.402/2016), permitindo que, em eventos autorizados pela prefeitura em qualquer lugar da cidade, seja tolerado um nível de ruído médio de até 85 db.

Esse barulho, além de causar enorme incomodo imediato, a longo prazo destrói de forma irreversível as células sensoriais, provocando surdez e acufenos —sensação de ouvir um zumbido na ausência de qualquer som externo.

A permissividade proposta pelo prefeito é chocante, pois as regras atuais da Lei de Zoneamento estabelecem que, na Zona Mista, o limite é de 60 db entre 7h e 19h, 55 db entre 19h e 22h e 50 db após as 22h.

Como a escala de medição do som é logarítmica, pequenos acréscimos numéricos causam grandes impactos. Como esclarece o físico Marcelo Aquilino, pesquisador do IPT, a sensação sonora dobra a cada 10 db de acréscimo, enquanto a energia sonora dobra a cada acréscimo de 3 db.

Isso significa que de 55 db (nível permitido pela atual legislação para o período das 19h às 22 h), a 85 db, limite proposto pelo prefeito, a sensação de ruído fica multiplicada por oito e a energia sonora que chega ao ouvido é mil vez maior. O impacto que esse nível de ruído gera na audição do receptor é comprovado.

Além disso, estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que a exposição a altos níveis de ruído causa outros problemas de saúde, como estresse, depressão, distúrbios cardiológicos e renais. Como os shows ocorrem à noite e nos finais de semana, período de descanso dos moradores, o impacto é enorme.

É evidente o esforço da gestão municipal para favorecer a Real Arenas, em detrimento da população. Embora shows nunca tenham respeitado a lei em vigor, só sendo fiscalizados pelo Psiu quando provocados pelo Ministério Público.

Foi o que ocorreu em abril deste ano, quando a empresa foi multada pela 3ª vez e, como era reincidente, teve a arena interditada. No dia seguinte, a prefeitura saiu a campo como se ela fosse a maior interessada.

De forma ilegal, mas aceita pela maioria governista do Legislativo, a gestão inseriu um "jabuti" em um projeto de lei que já tramitava na Câmara Municipal, objetivando autorizar um limite de 85 db em Zonas de Ocupação Especial (ZOE). Não por acaso, o Allianz Parque fica em uma ZOE.

A manobra era tão óbvia, explicitando de forma evidente o conluio entre a gestão de Nunes e a Real Arenas, que o projeto foi barrado e teve que ser retirado.

Embora a Justiça tenha concedido uma liminar —injustificável— que permitiu ao Real Arena dar continuidade aos shows, a empresa, pressionada, aceitou firmar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério Público e a prefeitura para resolver o imbróglio.

No TAC, assinado em 31 de outubro, a empresa se comprometeu a realizar adaptações na arena que mitigassem os impactos, para respeitar a legislação em vigor. Com ele, o inquérito do MP seria arquivado, providência que foi tomada em 6 de novembro. Surpreendentemente, um dia depois, a prefeitura envia o projeto alterando a lei.

A proposta da prefeitura torna o TAC letra morta, pois nenhuma adaptação será necessária para se respeitar o limite de 85 db. Como esclareceu o pesquisador do IPT, em 35 anos de experiência na mediação de ruídos, raramente se atingiu esse nível de ruído em residências de receptores.

O "jabuti" de Ricardo Nunes causou tanta indignação na cidade que um abaixo-assinado iniciado na tarde de sábado em 24 horas já havia atingido 7.500 apoiadores. Mas quem conhece como funciona o Legislativo pode prever o roteiro a ser seguido por esse projeto de lei.

Depois de colocado o "bode na sala" (85 db em toda a cidade), se articulará um acordo entre a prefeitura e sua base de apoio na Câmara para tirar o bode, como se isso fosse uma resposta ao anseio da sociedade.

O acordo estabelecerá que o limite de 85 db ficará restrito apenas nas ZOEs. Como o Allianz Parque fica em uma ZOE, a Real Arenas poderá continuar a atormentar o descanso dos moradores sob o abrigo de uma lei criada para favorecê-lo.

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