Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Cada indiciamento de Trump revela uma versão do ex-presidente

Resiliência do republicano nas primárias depende de qual alternativa seus eleitores vão escolher

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The New York Times

Vamos supor, porque parece uma suposição razoável, que ainda não chegamos ao fim dos indiciamentos de Donald Trump. Vamos supor que o caso na Geórgia, onde ele está sendo investigado por interferência na eleição, ou que a investigação do promotor especial em Washington rendam um processo judicial relacionado à conduta dele entre a eleição de novembro de 2020 e a insurreição do 6 de Janeiro.

Nesse caso, os vários indiciamentos vão servir também como mapa do caminho de sua Presidência e de sua era –cada um se encaixando em uma interpretação diferente do fenômeno Trump, e apenas juntos fornecendo a imagem mais completa de seu tempo.

O ex-presidente Donald Trump fala com apoiadores em campo de golfe em Nova Jersey após se apresentar a um tribunal de Miami
O ex-presidente Donald Trump fala com apoiadores em campo de golfe em Nova Jersey após se apresentar a um tribunal de Miami - Spencer Platt - 13.jun.23/Getty Images via AFP

O primeiro indiciamento, a ação de Nova York por violações de financiamento de campanha relacionadas a seu suposto caso com a atriz pornô Stormy Daniels, enquadra-se na narrativa frequentemente descrita como a "anti-anti-Trump". Essa interpretação reconhece até certo grau a insensatez e a sordidez moral do empresário, mas, invariavelmente, insiste que seus inimigos no establishment americano são na realidade mais perigosos que ele –porque estão "protegendo a democracia" ao pisotear sobre suas normas, ao abraçar teorias conspiratórias e ao lançar caças às bruxas sem sentido.

É difícil imaginar uma ilustração melhor do argumento anti-anti-Trump que um promotor ideologicamente motivado de uma cidade democrata indiciando um ex-presidente por uma acusação considerada dúbia até mesmo por muitos especialistas progressistas.

"Normas", que piada: o caso Stormy Daniels parece teatro de resistência, guerra jurídica enviesada –o tipo de excesso que os defensores de Trump insistem que define o antitrumpismo como um todo.

O novo indiciamento federal pelo qual o republicano foi citado criminalmente em Miami na última terça-feira (13) nos conduz a um terreno diferente. Desta vez o caso parece legítimo, e, mesmo que acusações movidas nos termos da Lei de Espionagem tenham um histórico bastante irregular, à primeira vista o indiciamento apresenta argumentos fortes de que Trump teve oportunidades de sobra para agir em conformidade com a lei e optou em vez disso por obstruir, sonegar e dissimular.

Mas, ao mesmo tempo, seria preciso ter coração de pedra para não achar o caso dos documentos secretos um pouquinho cômico: uma comédia de humor controverso sem dúvida, ao estilo dos irmãos Coen, mas, não obstante todos seus aspectos sérios, ainda assim essencialmente absurda.

As caixas empilhadas num banheiro espalhafatoso de Mar-a-Lago formam uma imagem indelével para quem interpreta a era Trump como um show de palhaço fanfarrão, com seu acúmulo de escândalos movidos pelo narcisismo e pela incompetência, com seus intérpretes sérios preocupando-se com a "ameaça autoritária" ou a "crise da democracia", quando a evidência diante de seus olhos era muito mais superficial e estúpida —não uma reprise dos anos 1930, mas um reality show desregrado.

No final, porém, a leitura do reality show foi insuficiente, pois Trump entrou em um território genuinamente sinistro –buscando o que teria sido uma crise eleitoral pós-eleição, inspirou a violência de uma multidão.

Esse aspecto de sua Presidência ainda aguarda uma iluminação jurídica. Mas é muito possível que a tenhamos, e, se houver um processo judicial ligado à sua conduta pós-eleição, isso completará um tríptico presidencial –o Trump perseguido, o Trump farsesco e o Trump sinistro aparecendo em nossos tribunais.

Como questão de política eleitoral, a sua resiliência como candidato nas primárias depende de os eleitores republicanos interpretarem o tríptico inteiro à luz de seu primeiro episódio –de modo que o excesso de seus inimigos seja a única coisa que seus admiradores e apoiadores enxerguem e que se suponha que tanto seus comportamentos mais absurdos quanto seus atos mais destrutivos são exagerados ou inventados, não passando de exagero de progressistas ou de histeria de opositores.

Essa visão é falsa, mas é arraigada entre os republicanos e possui a vantagem da simplicidade. Enquanto isso, os rivais do empresário dentro do partido precisam tergiversar –insistindo constantemente que Trump foi tratado injustamente, porque os eleitores republicanos querem ouvir isso, e procurando gentilmente fomentar a ideia de que ele próprio provoca parte dessa situação e que um republicano diferente poderia ser tão eficaz quanto ele, sem constantemente dar munição a seus inimigos.

Num ambiente de eleição geral, porém, temos evidências fortes, a partir das midterms, de que muitos eleitores indecisos invertem a interpretação republicana do tríptico e interpretam o trumpismo à luz de sua manifestação mais sombria. Tanto os excessos progressistas que poderiam ter repudiado quanto as travessuras trumpistas que poderiam ter tolerado cedem ao desejo de evitar uma reprise do 6 de Janeiro.

É possível imaginar que a multiplicação de indiciamentos acabe ajudando eleitores republicanos que não compartilham essa interpretação a reconhecer quantos de seus compatriotas o fazem, fazendo com que Trump finalmente pareça demasiado inelegível. Mas o ex-presidente sempre se deu bem ao persuadir uma massa crítica de republicanos a viver dentro de sua realidade. E dentro daquela mansão espalhafatosa, só há espaço nas paredes para um retrato enorme e berrante: "O Martírio de Donald Trump".

Tradução de Clara Allain

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