Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Dilema da nação brasileira é combater a fome, que já se tornou verde e amarela

Como pensar resistência política e econômica quando metade da população não vai conseguir alimentar suas famílias no Natal

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O Brasil atual vive o dilema de ter apenas um grão de milho para alimentar dois pombos famintos. O que fazer diante desse impasse?

Por um lado, poderíamos logo pensar —enxotamos um dos pombos e está resolvido o problema; de outro, aparentemente prático, seria dividir o grão de milho no meio, assim contemplava as duas aves. No entanto, uma terceira via poderia surgir. Com meio milho para cada um dos pombos, alimentaremos meia fome, ou seja, o problema estaria por esta arte também meio resolvido.

Manifestantes caminham da Praça da República até a faculdade de Direito São Francisco, no centro da cidade, para se manifestar contra Bolsonaro, o preço do gás de cozinha e de combustíveis, em abril - Bruno Santos/Folhapress

Quem tem fome tem pressa, já nos ensina o dito hoje mais do que popular.

O Brasil voltou a viver o flagelo da fome que assola uma população assustadoramente grande no território nacional. A fome, precisa e certeira, sabe a porta que bate e atormenta —a da população pobre e preta, com destaque para as mulheres e as crianças.

No Brasil de 2022, cerca de 19,3% dos domicílios chefiados por mulheres passam fome, segundo nos informa o site da Ação da Cidadania, que pode ser consultado facilmente, seguido de outros sites que propagam os mesmos números. Ainda de acordo com essas mesmas fontes, por volta de 125,2 milhões de brasileiros vivem com algum tipo de insegurança alimentar e 33,1% deles passam fome de forma grave e contínua.

Como país continental, o Brasil está entre as dez maiores economias do mundo e é o quarto produtor de alimentos do planeta —atrás apenas de China, Índia e Estados Unidos. Por qual razão esse país ainda tem gente que passa fome ou não tem o que comer no dia a dia?

Todos temos acompanhado há semanas a discussão sobre a PEC da Transição. Um dos seus gargalos é a questão do pagamento do Bolsa Família, que surgiu para atender a população mais necessitada. Ora se discute o chamado "teto de gastos", pautado por resistências econômicas e políticas de parlamentares e economistas, ora se esbarra em questões a respeito de sua tramitação —e, consequentemente, seus prazos e alcance social.

Como pode ser pensar em resistência política e econômica enquanto milhares de pessoas passam necessidade alimentar no país. Será que temos que pedir ao gênio da lâmpada para dizer para esses parlamentares —eleitos pelo voto desse mesmo povo—, lembrando o poeta Solano Trindade, que nos lares brasileiros "tem gente com fome/ Tem gente com fome/ Tem gente com fome."

Até antes do Natal todo Congresso entrará de férias, portanto se o assunto da PEC não for resolvido nesse período, corre-se o risco de ficar fora do novo orçamento federal.

Enquanto uns "bons cidadãos e cidadãs", alçados ao poder, passarão seus Natais no regalo e no conforto da boa mesa, mais da metade da população brasileira não vai ter como alimentar suas famílias. É triste. É doloroso. A fome dói e mata.

O Congresso tem de parar de encarar a PEC apenas como instrumento de projeto legislativo, sem conotação com a realidade social e suas mazelas, que estão na básica das necessidades humanas. A PEC precisa ser vista para além de partidos e ideologias: ela é uma questão moral, que impacta na vida ou morte de milhares de pessoas, as quais não podem esperar até o fim do cafezinho dos nossos bons legisladores.

Nesta quarta-feira, teremos a real compreensão de qual Brasil pertencemos e a que cor ele está ligado. A escritora mineira Carolina Maria de Jesus chegou a escrever que "a fome é amarela". Eu lhe peço autorização para acrescentar. Carolina, a fome é verde e amarela.

Não é uma questão de dinheiro, o Brasil é grande o suficiente para sustentar seu povo mais necessitado – ou está na hora de acordar esse eterno gigante adormecido? A fome tem como fator histórico, em qualquer parte do mundo, a concentração de renda e a péssima distribuição de alimentos.

Só a sustentabilidade do sistema alimentar pode trazer tranquilidade para as famílias, como no Brasil. A epidemia da fome, entre nós, é acentuada, sobretudo, nas regiões do Norte e Nordeste do país —mas está a um passo de virar endêmica. É lá onde a barriga do pobre mais ronca a noite.

A COP27, conferência da ONU sobre mudanças climáticas, lançou um sinal de alerta para o mundo: produzir danos à natureza é mais caro do que a sua preservação. Alimentar famílias, portanto, é mais barato do que enterrá-las.

Isto dito, é crucial que a partir desta quarta-feira, o Parlamento saiba bem que decisão tomar entre o único grão de milho e os dois pombos famintos. Um Natal sem fome –como propagou Herbert José de Sousa, o Betinho– é um bom começo de conversa e um bom início de final de ano.

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