Chef do Paraná leva sua delicada cozinha autoral para Nova York

Com crescente projeção internacional, Manu Buffara cozinha pensando no futuro e nas relações humanas

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Curitiba

Na casa da chef paranaense Manu Buffara, tem um mapa do mundo enorme pendurado na parede, com marcações coloridas. Amarelo e vermelho ajudam as filhas, de 2 e 4 anos, a identificar onde a mãe está e para onde a mãe vai.

Uma florista vizinha ao seu restaurante, em um bairro nobre de Curitiba, a abraça enquanto diz “Está international, hein?”. Decerto espalhou-se o frisson gerado em torno da notícia de que Manoella Buffara, 35, vai abrir em agosto um negócio em Nova York, com dois sócios americanos. Aqui, tem o Manu; lá, terá o Ella.

O novo restaurante é reflexo da projeção intensa e crescente que a chef tem tido fora do Brasil. Virou habitual em sua agenda cozinhar com personalidades como Dominique Crenn, primeira mulher a ganhar cotação máxima no Michelin nos Estados Unidos, que a abordou a primeira vez para um convite via Instagram.
 

Manu, que no ano passado foi agraciada com o prêmio One to Watch, do 50 Best, que reconhece seu restaurante como o mais promissor da temporada na América Latina, também tem participado com frequência de congressos e ministrado palestras em instituições célebres, como Culinary Institute of America e Basque Culinary Center, em San Sebastián, na Espanha, ao lado dos chefs mais premiados do mundo, como o italiano Massimo Bottura e os irmãos Rocca.

“É uma forma de conhecerem meu trabalho. Não estou no Rio ou em São Paulo, é difícil as pessoas virem a Curitiba”, diz Manu, que enxerga no Ella outra oportunidade de fazer o mesmo.

Para Nova York ela pretende transportar, grosso modo, a filosofia da cozinha da Manu, “que é uma mulher, do sul do país, e que usa o máximo de produtos de um raio de 300 quilômetros”.

Pode-se fazer comida brasileira fora do país? “Eu consigo expressar minha cozinha em outros lugares. O que importa é ser um líder, compartilhar, formar pessoas.” E então relembra o francês Alain Ducasse, que manteve suas estrelas espalhadas pelo mundo mesmo da cama, à época de um acidente.

Mais palpável será a utilização de técnicas que Manu identifica com o Brasil —a folha de bananeira para proteger o peixe na cocção, a brasa, os caldos na panela de barro.

Ainda que alguns pratos se repitam cá e lá, como o nhoque de fígado de galinha e batata-doce acomodado em um caldo límpido de coração de cordeiro e pele de porco, o que a move é a essência do que faz, um jeito de se relacionar com os ingredientes e de combiná-los que resulta em uma cozinha delicada, inventiva, sensível à natureza e ao ser humano.

Irá construir, portanto, contato com os trabalhadores rurais americanos e está excitada com a possibilidade de conhecer produtos, expandir sua criatividade e fazer adaptações em algumas receitas de coleções passadas da casa curitibana.

O preparo do tempurá de espinafre com fígado de tamboril, por exemplo, sofre uma mutação no novo território: passa a ser feito com folha de shisô com redução de casca de marisco e água, sob foie gras ralado.

“Nunca pensei em abrir um restaurante em Nova York, mas para mim é muito mais extasiante do que fazer a minha cozinha em São Paulo, onde haveria uma limitação de clientes e ingredientes, em relação ao que eu já faço em Curitiba.”

O sonho de Manu, aliás, está distante de um centro urbano cosmopolita. Ela pretende em dois, três anos transportar seu restaurante para uma chácara na área metropolitana de Curitiba e desenvolver um projeto de troca de conhecimento, que abranja não só profissionais de cozinha. “Quero ter minhas galinhas, abrir três vezes na semana e que meus funcionários possam trabalhar mais no campo e na criação e menos no estresse de um restaurante. Quero envolver crianças.”

Dominique Crenn diz que é preciso inspirar os outros para fazer a diferença. Manu observa no cozinheiro um grande poder, “que ele não sabe utilizar”. “As pessoas pensam só em seus próprios restaurantes. O cliente chega, come, e daí? O que você está fazendo para a comunidade?”, diz ela, que vê na educação, sua mais impactante contribuição.

“É muito bonito falar que você usa ingredientes do pequeno produtor, mas ninguém foi lá ensinar o que pode ser melhor cultivado na terra dele.” Hoje, diz Manu, quem usa maior quantidade de agrotóxico no Brasil são os pequenos produtores. “Por quê? Porque eles precisam de dinheiro, não podem perder o que produzem e ninguém ensina como combater pulgão.”

A chef se dedica à educação e também ao aprendizado —observa atentamente os hábitos das comunidades. “É preciso ter tempo para as pessoas. Conversar, escutar.”

Seu ofício, aliás, surge apoiado no tempo e no tato. “Cozinha é tempo. De cultivo, de cozimento. Animais e vegetais morrem por você. Precisa respeitá-los, saber esperar, ter paciência, não errar uma cocção porque quer ser imediatista”, diz, enérgica.

“Minha avó [materna] sempre me ensinou a tocar na comida. Tenho mania de pegar as coisas na mão, cheirar, mordê-las cruas”, segue Manu, que cresceu em uma fazenda nas cercanias de Maringá influenciada pelo pai agrônomo, a abater animais, fazer queijo, tomar leite que ela mesma ordenhava, ainda quente. Da família da mãe, de Paranaguá, no litoral paranaense, absorveu a intimidade com os peixes e os frutos do mar.

Refere-se amiúde ao passado familiar e, com graça, às suas aventuras da adolescência e da juventude. Viagens internacionais, nas quais estudou inglês, mochilou no Alasca de carona, atendeu Bill Gates em um hotel nas proximidades de Seattle e desossou frangos e mais frangos com o peso do próprio corpo para lhes quebrar os ossos  —"depois, cortei na lateral como se fosse uma roupa, sabe? [risos]”.

Ainda que tenha se formado em jornalismo, enveredou para cozinha desde a largada. Hoje, pratica ioga diariamente, corrida, meditação. Frequenta a igreja católica todos os domingos com a família. E, sem tempo, pinta o cabelo e afins em casa, com a ajuda da babá das filhas.

No início da carreira, também passou pelo dinamarquês Noma, eleito primeiro do mundo sucessivas vezes pela revista inglesa “Restaurant”, e no americano Alinea, do chef Grant Achatz, já reconhecido como o melhor dos Estados Unidos. Aprendeu a escolher camarões vivos, a abrir algas, a defumar ovos.

Diz que cozinha, porém, pensando no futuro.  “Temos de passar às crianças o quão importante é o bom alimento”, prega Manu, que acredita que a gastronomia vive ciclos de modismos. “Por que agora tomar leite integral é ruim? Desde quando é ruim tomar leite de vaca? O pão que tua avó faz, põe no forno a lenha, é ruim porque engorda? Estamos transmitindo informações muito erradas.”

Para ela, chefs e indústria precisam se entender e é preciso ressignificar a ida ao supermercado.  “A gente não precisa estocar alimento. Hoje o mundo produz 50% a mais do que necessita. Se você compra, a indústria produz mais. Quem está errado?”, provoca.

“Se você entrar na despensa de uma família de classe média tem comida para um mês.”
Manu reforça, inclusive, a importância de o feirante também ter consciência, desfazer o maço de cenoura, cortar o cacho de banana,  para não gerar desperdício na casa de quem compra. “No Manu, a gente compra uma batata-doce”, fala pausadamente, u-m-a.

E qual é a cozinha do futuro? “É a que já está acontecendo, mais simples, com mais vegetais e grãos. A gente pode ver isso claramente nas cozinhas populares. No restaurante da Prefeitura aqui de Curitiba o prato de R$ 1,50 tem uma proteína, arroz, feijão, dois legumes e salada, uma quente e uma fria. Não vamos deixar de consumir carne, mas acho que vamos comer com mais consciência.”

Chef também se dedica a hortas urbanas comunitárias

A dedicação de Cândido, personagem de Voltaire (1694-1778), e sua amante ao cultivo do solo e aos cuidados com a horta injetaram-lhes ânimo —recuperaram-se da depressão.

Também é na horta que o francês Michel Bras, 72, considerado um dos maiores cozinheiros do mundo, encontra seu paraíso.

Manu Buffara, que o tem como referência, enxerga as hortas urbanas de Curitiba, projeto da prefeitura do qual participa, que começou em 2004 com quatro famílias, e hoje beneficia mais de 3.000, como uma forma de comunidades carentes "viverem novamente".

"Tem um senhor de oitenta e poucos anos, cego de um olho, que sai todos os dias de casa e anda seis quilômetros até a horta com sua carriola, feliz da vida."

Por meio do programa Horta do Chef, finalista da maior premiação de cidades inteligentes do mundo, a própria Manu tem permissão para usufruir das hortas —a maior tem 13 mil metros quadrados e cem famílias envolvidas.

Instalada em um antigo terreno baldio cedido pela Eletrosul em Tatuquara, o bairro mais mais pobre e periférico de Curitiba, ela colhe semanalmente quase todas as ervas, brotos, hortaliças e tubérculos que usa em seu restaurante.

"Os chefs fazem parte porque é bom. A gente tem manjericão, tomilho, cenoura, beterraba", diz Delso Moretti, 50, presidente da associação dos moradores do Rio Bonito e coordenador da horta, cujas regras básicas são não mexer na horta alheia, nem usar agrotóxico, plantar e limpar.

Alimentação saudável e subsistência das famílias são os pilares do projeto, que também abrange uma roça, onde se planta feijão, milho e árvores frutíferas. A maioria destas últimas foram doadas pelo Fru.to, seminário internacional criado por Alex Atala, que apadrinhou Manu Buffara desde o início da carreira da chef.

"O excesso de produção é liberado para doação e para vender, pode até dar uma pequena renda", diz Moretti. Para Manu, o essencial é a troca de informação promovida ali. "Não é só plantar alface, a gente desenvolve a comunidade", diz a chef, que também introduz sementes e mudas de itens novos no espaço.

"Ela ensina que podemos preparar casca de banana à milanesa, como um bife, que podemos fazer um suco de couve, limão e folhinhas de hortelã e tomar no lugar de cachaça e cerveja [risos]", diz o horteleiro Mario Roik, 49, dispensado de seu trabalho no transporte público pela idade.

Diante de problemas para conseguir esterco, Moretti ensinou a obter adubo com compostagem própria. "Esse é o resultado, olha" —e pega um punhado de terra preta, úmida e fresca nas mãos para mostrar.

"O trevo a gente jogava fora. Para nós, era praga, a Manu ensinou que é luxo. Da rúcula, a gente comia só a folha e ela pediu para deixarmos a flor", diz Moretti. "Com as flores, que é melhor salada que a folha, começou a vir borboleta de tudo quanto é qualidade na hora do sol quente, uma coisa linda."

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