Sucesso desde 1980, Famiglia Mancini completa 40 anos

Quarentena baixou de 35 mil para 5 mil o número de refeições mensais servidas pelas cinco casas

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Fachada do restaurante Famiglia Mancini, com carros importados

Fachada do restaurante Famiglia Mancini Joel Gonzalez/Divulgação

São Paulo

É raro um restaurante completar 40 anos de idade em São Paulo. Mais ainda quando se mantém décadas no auge da popularidade. Caso do Famiglia Mancini, no centro da cidade.

Inaugurado em 10 de maio de 1980, ele nasceu sem um plano claro de como se estabelecer —mas foi um sucesso imediato graças a uma casualidade, conta o proprietário Walter Mancini, hoje com 78 anos.

Na época endividado, trabalhando como garçom, comprou o ponto da pizzaria Zi Tereza meio por impulso, com dinheiro emprestado. Ficava numa área efervescente da cidade, na rua Avanhandava, próximo à rua Nestor Pestana e a referências da boemia como a cantina Gigetto, para onde rumavam os artistas e público de teatros como o TBC e o Maria Della Costa, mais a clientela de outras áreas artísticas, pois ali perto ficavam as TVs Excelsior e Record.

Foto preto e branco com Walter Mancini segurando pratos de seu restaurante
Walter Mancini em 1980, ano de inauguração do Famiglia Mancini - Arquivo Pessoal

No primeiro dia no seu primeiro restaurante, com a casa fechada e sem funcionários, horas depois de receber as chaves, Mancini viu uma turma assomar à porta. Lelia Abramo, grande atriz que também presidia o sindicato da categoria, chegava com uma comitiva depois de um desentendimento na casa ao lado, o sempre lotado Gigetto.

Sendo conhecido da turma, Mancini improvisou o jantar junto com os atores (que além disso fizeram uma vaquinha para ajudá-lo neste começo). E seu restaurante tornou-se uma nova referência para o mundo do teatro em São Paulo.

Walter Mancini sorri em frente a uma macarronada
Walter Mancini, dono do restaurante Famiglia Mancini, em foto atual - Joel Gonzalel/Divulgação

Filho único de mãe analfabeta, nascido num cortiço próximo ao Mercado Central, desde os dez anos Mancini fizera bicos nas ruas e no Mercadão. Mas aos 17 anos passou a trabalhar na noite, em boates do centro (como Ton-Ton e Cave).

Fez produção de shows, iluminação, sonoplastia, administração; foi bailarino, foi DJ. Ao mesmo tempo frequentava as cantinas tradicionais, levado por um tio que cantava canções napolitanas nos restaurantes.

Afora uma inovação (a mesa de antepastos cobrada por quilo), o Famiglia Mancini seguia o filão das cantinas sem cozinha notável, mas honesta, farta, barata (e no seu caso, contando com o molho preparado por sua mãe, Mariannina, que já fornecia massas para cantinas históricas como a Balilla).

Com o dinheiro que ganhou com as filas intermináveis de clientes, terminou “adotando” a rua Avanhandava, onde havia morado, chegando a reurbanizar, tornando atração turística aquele trecho cenográfico com calçadas planas, palco a céu aberto, luzes coloridas e chafariz.

Ambiente do restaurante Famiglia Mancini, com mesas e chafariz
Ambiente do Famiglia Mancini - Joel Gonzalez/Divulgação

Naquela época, ano 2000, abriu em frente o Il Ristorante Walter Mancini, de ambiente e menu italiano mais sofisticado e jazz ao vivo. Depois vieram a pizzaria Famiglia Mancini; o Madreperola, de cozinha do mar; a lanchonete Migalhas.

As casas empregam 380 pessoas que antes da pandemia serviam mais de 35 mil refeições por mês —usando uma tonelada de tomates (por dia!), uma tonelada de camarões por mês, outro tanto de polvo —90% disso somente para a casa-mãe.

Nesta os pratos mais pedidos são —como em qualquer cantina paulistana— lasanha e filé à parmigiana, seguidos de longe por spaghetti com frutos do mar e perna de cabrito ao forno com batatas e brócolis.

Hoje, na lenta retomada, Mancini atende 5.000 pessoas por mês. Durante a pandemia não houve demissões, houve investimento (por exemplo, a reforma do Walter Mancini): voluntarista, o empresário vive imerso em dívidas milionárias (“já que tenho credibilidade e crédito, eu uso”) mas não abandona seus projetos.

Nos 130 metros do quarteirão que tem sua cara também funcionam sua papelaria/loja de arte Calligraphia (ele é um calígrafo primoroso), o brechó Gato Bravo Vintage Shop de sua filha Rachel, e seu ateliê.

Como “devo tudo ao mundo do teatro” (diz ele), Mancini nunca deixou de apoiar a área, chegando a criar o Piccolo Teatro, um palco profissional aberto para a rua, onde peças e músicas gratuitas são apresentadas. Música, aliás, não falta por ali: o restaurante Walter Mancini tem um belo palco para jazz e bossa-nova, e suas várias casas dão sustento a cerca de 30 músicos.

Apresentação de peça na rua
Piccolo Teatro, da Famiglia Mancini - Joel Gonzalez/Divulgação

Neto de italianos da Puglia, casado há 38 anos, três filhos, religioso, atleta, abstêmio (“já bebi muito mais do que devia”), workaholic (quase não dorme), Mancini é um homem de sete instrumentos.

Também poeta, mas com especial paixão pelas artes plásticas. Autor de elegantes telas, minuciosamente pontilhadas com delicados elementos gráficos e caligráficos, ele decora seus restaurantes com objetos e esculturas próprias que dão uma finesse inesperada a quem imaginasse um ambiente cantineiro.

O argentino Quino (1932-2020), criador da Mafalda, levou um quadro seu; “ele disse que meu traço lembra Steinberg, e que invejava meu uso das cores”, diz, com orgulho. Seu restaurante, aliás, é adornado por retratos dele e sua turma desenhados pelo artista Ziraldo.

A revitalização do centro da cidade, assunto hoje em voga, teve um precursor em Walter Mancini —que sempre recusou convites para migrar para os Jardins, expandindo seus negócios no rincão onde nasceu.

Por coincidência, quando ele inaugurava o Famiglia Mancini, não longe dali engatinhava uma menina que também nasceu pobre perto do mesmo Mercadão da sua infância, e que desde criança, como ele, trabalhava nas imediações. Chamava-se Janaína e hoje, com seu marido Jefferson Rueda e seus restaurantes (A Casa do Porco, Bar da Dona Onça), é pilar da mesma luta por preservar o centro de São Paulo.

Quando os Rueda se casaram em 2005, quem desenhou o convite foi Walter Mancini. Como que selando uma aliança tácita em torno de um sonho que cada um realiza a seu modo. No caso de Mancini, desdobrando-se em muitas paixões e artes —das quais a culinária abriu caminho para inscrever seu nome na cidade.

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