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Na crítica gastronômica, diferenças entre palpiteiro e especialista são estudo e trabalho, avalia Josimar Melo

Repulsa à crítica profissional é recorrente, e é preciso saber como imprensa vai se portar

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São Paulo

Os desafios atuais da crítica gastronômica são os mesmos da crítica de arte em geral, e do próprio jornalismo na era da internet.

A disseminação de blogueiros palpiteiros e de plataformas colaborativas (inundadas por quadrilhas que vendem avaliações positivas) já foi festejada como o fim da "ditadura do crítico".

Era a celebração da mediocridade e do obscurantismo, da morte dos especialistas. A opinião do vizinho, somada à do tiozinho anônimo, sobre cinema, livros, restaurantes, passaram a ser a lei. Enfim, a democracia!

Gabriel Cabral/Folhapress

Democracia serve para escolher governantes, mas a opinião da maioria em relação às artes pouco quer dizer. Uma pesquisa de opinião, ou a somatória de votos em um aplicativo, no máximo atesta a preferência de um universo de pessoas, mas não uma avaliação técnica e abalizada sobre nada.

Para isto servem especialistas: críticos que dedicam seu tempo a estudar uma área, que sacrificam seu sono para assistir a vários filmes madrugada adentro, ou seu fígado ao almoçar duas vezes seguidas para entregar uma avaliação precisa aos leitores.

Acho ótimo a internet abrir espaço para amadores darem pitacos sobre o que gostam. O que pode parecer espantoso é haver tanta gente que os tome como autoridades, e os siga credulamente. Mas isto sempre foi assim. Mesmo antes das fake news atuais.

A imprensa de prestígio sempre foi minoritária. Os tabloides sensacionalistas e mentirosos sempre tiveram muito mais leitores (menos em países como Brasil, onde a população iletrada e pobre não consumia jornais).

Blogueiros festivos trocam elogios por dinheiro ou comida. Um blogueiro mais ácido está apenas achacando restaurantes (aos amigos, elogios; aos que não aceitam sua extorsão, calúnias). E atraem cliques.

Como jornalista, não fico em pânico com a situação, que não é nova: em Londres ou Nova York, jornais sensacionalistas sempre foram maioria; e, se uma crítica do New York Times é influente, uma fofoca no tabloide New York Post sempre infernizou donos de restaurante.

Agora, no universo da internet a situação se reproduz. Com as exceções de praxe: a "imprensa alternativa" (jornais nanicos, fanzines) sempre foi um bafejo de independência e olhar crítico, como hoje fazem alguns sites e blogs. Alguns.

O que preocupa é como os grandes veículos vão se portar. Já erraram no início, ao disponibilizar seu conteúdo digital gratuitamente: ler a Folha ou Le Monde era o mesmo que ler fake news de um palpiteiro —bastava um clique.

A situação está mudando: os veículos agora cobram por seu conteúdo, e os leitores estão aderindo a pagar para ter informação profissional e mais confiável (inclusive críticas abalizadas). Mesmo que este contingente de leitores seja minoritário, como sempre foi.

No entanto, algo preocupa. Na crítica gastronômica, uma diferença do palpiteiro para o especialista é que o primeiro vai uma vez ao restaurante e já se julga autorizado a fazer uma "análise" definitiva do lugar, dar cotações a partir de uma única impressão. Como se ouvisse uma única faixa e julgasse um álbum musical inteiro.

Já o crítico vai ao mesmo restaurante duas, três ou mais vezes, avalia seu funcionamento em dias e horas diferentes, prova o máximo de pratos do menu —escorado em anos de estudo e trabalho.

Isso toma tempo, e custa dinheiro. Para um jornalista se dedicar e fazer um trabalho que diferencia seu veículo do ramerrão dos tabloides (impressos ou digitais), ele precisa ser pago (para ter este tempo dedicado), e precisa ser financiado (ter suas despesas bancadas pelo veículo).

Hoje vemos jornais e revistas que crescem em público digital, mas decrescem na receita publicitária, cortando gastos e despesas. Blogueiros (e instagramers, tiktokers...) continuarão a brotar, alguns se divertindo com seu hobby, outros lucrando com sua desonestidade enquanto seduzem os crédulos. Não é o problema.

Mas, se a imprensa cortar despesas, asfixiar as condições materiais para seus especialistas, isto, sim, pode ser uma sentença de morte para a crítica minuciosa, verdadeira e confiável.

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