Doces tradicionais brasileiros recuperam lugar de destaque em restaurantes e doçarias

Chefs e confeiteiros apostam em versão moderna com menos açúcar e provocam a memória afetiva

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São Paulo

Parte da doçaria tradicional brasileira, aquela que os portugueses trouxeram e adaptaram aos ingredientes que havia por aqui com a receita de "fruta, açúcar, fogo e só", já não está mais restrita à esfera doméstica ou à produção regional. Com a devida pompa que merecem, nossos doces, finalmente, estão ocupando lugar de destaque entre chefs e confeiteiros.

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Queijo com goiabada da queijaria artesanal Brivido - Divulgação

No restaurante Chou, por exemplo, a chef Gabriela Barretto reservou um pedacinho do menu de sobremesas à dupla doce com queijo. Já teve pessegada com queijo de cabra, goiabada cremosa com queijo da Canastra e doce de laranja com queijo de ovelha.

Para o dia 8 de junho, aniversário da casa, Gabriela escolheu as castanhas portuguesas em calda, cozidas uma a uma depois de enroladas em gaze, antiga técnica que impede que desmanchem.

Os doces chegam prontos à cozinha do Chou. Boa parte vem da produção de uma doceira de Poços de Caldas, em Minas Gerais.

"No interior, as pessoas ainda se presenteiam com doces. Eles foram relegados a uma área da culinária não requintada, mas é uma tradição tão bonita. Por isso quis resgatar essa dupla para o finalzinho da refeição. A goiabada com queijo foi campeã de vendas", diz Gabriela.

Famosa pela confeitaria requintada, Marília Zylbersztajn é outra que aposta na volta dos doces tradicionais. Vendidos em potes de 300 gramas, a R$ 18, os doces de banana, de consistência cremosa, e de abóbora com coco são feitos por ela.

"Adoro esses doces. A goiabada é um dos meus preferidos, mas tanta gente faz tão bem que não vi muito sentido em fazer também. Mais difícil é achar um bom doce de banana ou de abóbora."

No fim do ano, Marília vendeu combos de doces com queijo de ovelha. A combinação com queijos mais salgados e curados, ela garante, é imbatível.

A modernização dos doces passa pela redução da quantidade de açúcar. No passado, usava-se a proporção um para um, ou seja, um quilo de fruta para um quilo de açúcar —era um jeito de facilitar o processo de cozimento e garantir vida útil mais longa, em uma época em que não havia geladeiras.

"Quanto mais açúcar, mais rápido o doce atinge o ponto", explica o gaúcho José Adolfo Pompernaier, sócio do Sítio Humaytá, localizado na Serra Fluminense. Com cerca de 30 doces e geleias no cardápio da fábrica, ele orgulha-se de ter conseguido chegar a uma redução considerável do açúcar. "Hoje, usamos 200 gramas para cada quilo de fruta."

A produção de 15 mil potes mensais é artesanal —os doces são mexidos em panelas e vendidos em empórios, restaurantes ou pelo e-commerce. Os maiores sucessos da marca são o doce de laranja-da-terra, de figo Ramy (cuja produção leva até cinco dias) e a ambrosia, à base de leite e ovos.

A partir de junho, Pompernaier retoma as visitas ao sítio, com agendamento, para que os turistas espiem a produção de perto e degustem os doces.

Uma das marcas registradas dessa parcela da doçaria tradicional brasileira é a presença de poucos ingredientes na receita —herança de um tempo em que fazer doce era um recurso para preservar as frutas recém-colhidas no quintal ou dar destino ao leite de produção própria.

Figo em calda da Fazenda Nova - Divulgação

Para a chef Heloísa Bacellar, é assim até hoje. Apresentadora do programa de TV "Na Cozinha da Helô", no canal a cabo Sabor & Arte, ela mora em uma fazenda no interior de São Paulo e vive enchendo potes de vidro com suas compotas e doces cremosos.

"Venho colhendo uma infinidade de abóboras e estou fazendo vários doces diferentes, com e sem coco, em pedaços, desmanchando... Há uns meses, fiz muito doce de figo, de marmelo e de ameixa também. É uma prática coerente para quem planta alguma coisa e quer usufruir de algo gostoso por muito tempo", avalia.

Preservar a tradição doceira também tem sido a missão de Adriana Lira, proprietária da Dona Doceira, no Itaim Bibi. Quando iniciou a pesquisa, cerca de 15 anos atrás, ela escolheu a cidade de Goiás Velho, em Goiás, como ponto de partida. Passou muitas horas ao lado dos fogões das doceiras para registrar as receitas.

"Me debrucei sobre os cadernos, mas a forma de preparar os doces mais simples não chegava a ser registrada. Como as doceiras faziam tudo de olho, eu observava com o termômetro em punho para entender os diferentes processos de cocção", lembra.

Além de compotas como a de limão e de mamão verde, Adriana trouxe para São Paulo uma bonita tradição da antiga capital de Goiás: as flores de fitas de coco, técnica que sempre foi reservada aos dias de festa. Mas ela impôs duas importantes modificações à receita.

"Reduzi o açúcar em 60% e troquei o corante que as doceiras usam por frutas naturais. Passei a colorir as flores com amoras e morangos, por exemplo."

Queijo azul com figo no restaurante Chou - Gui Galembeck

Já tem doceiro fazendo verdadeiras estripulias a partir da doçaria tradicional. Proprietário da Fazenda Nova, no sul de Minas, o casal Carolina Sant’Anna Villela e Keith Rodrigues faz doces em fogão a lenha, usando frutas do próprio quintal.

A dupla começou com a goiabada, mas aos poucos foi arriscando receitas mais novidadeiras. O doce de jabuticaba leva tomilho fresco e pimenta Jamaica, enquanto o caramelo de goiaba é temperado com sal e pimenta malagueta. A produção chega a São Paulo pela queijaria artesanal Brivido, que entrega os doces em domicílio, junto com os queijos da marca.

Quem também resolveu brincar com a doçaria foi Paulo Lemos, o Peéle, proprietário da Lano Alto, localizada em Catuçaba, distrito de São Luís do Paraitinga (SP). Em vez de levar as frutas com açúcar ao fogo, ele adota a técnica da fermentação.

Os testes começaram quatro anos atrás depois que Peéle aprendeu uma receita, veja só, de alho fermentado com mel para curar uma gripe. "Funcionou como remédio, mas gostei tanto do sabor que resolvi testar com outros ingredientes", conta.

Fermentadas com mel ou com açúcar, frutas como pêssego, banana e amoras de árvore, mais pretinhas do que as comuns, rendem produtos bons para acompanhar queijos e iogurte. Por enquanto, eles podem ser comprados pelo site e chegam a São Paulo por um esquema apelidado de "caronas solidárias".

Mas, assim que a lojinha ficar pronta, em junho, a Lano Alto passa a receber visitantes na propriedade –basta agendar antes.


Não é tudo a mesma coisa

Embora partam do mesmo princípio, as receitas dos doces de frutas (e legumes, caso da abóbora e da batata doce) podem resultar em produtos bem diferentes, basta modificar alguns detalhes do processo. Quem explica é Gil Gondim, autora do livro "Conservas do Meu Brasil: Compotas, Geleias e Antepastos" (Senac-SP).

  • Compotas são feitas com frutas inteiras ou em pedaços, cozidas em água com açúcar e especiarias, como cravo e canela.
  • No doce cremoso, não vai água: só a fruta, o açúcar e as especiarias.
  • Na receita de geleia, frutas cozidas em água com açúcar e limão recebem o reforço de pectina, elemento presente em algumas frutas, com maçã —em contato com a acidez do limão, ela gera a consistência gelatinosa.
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