Vinhos naturais ganham espaço à mesa com método ancestral de produção

Bebida vinificada sem recursos tecnológicos pode ser provada em restaurantes e até em wine bar excusivo

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São Paulo

Quem gosta de vinhos já deve ter notado que uma nova categoria da bebida anda ocupando cada vez mais espaço nas cartas de restaurantes e bares: os chamados vinhos naturais, ancestrais ou de baixa intervenção.

Como eles geralmente aparecem associados aos vinhos orgânicos ou biodinâmicos, a confusão é grande. Separar cada uma dessas categorias é o primeiro passo para compreender as diferenças —e elas são grandes.

Taças na loja e wine bar Primitivo, em Pinheiros, onde é possível degustar os vinhos com tábuas de frios - Divulgação

Vinhos orgânicos são produzidos a partir de uvas cultivadas sem pesticidas, herbicidas, fungicidas ou adubos químicos —e elas devem ser, necessariamente, certificadas como tal. Já os biodinâmicos vão além.

Neste caso, os frutos, além de orgânicos, são cuidados conforme os preceitos criados pelo filósofo Rudolf Steiner no começo do século 20. Segundo sua teoria, a saúde do solo depende da integração da agricultura com vários aspectos da natureza.

Ambas as classificações, portanto, dizem respeito apenas à etapa agrícola da produção, ou seja, ao cultivo das uvas.

Vinho natural é outra história. Embora ainda não haja uma regulamentação brasileira para o segmento, os vinhateiros concordam que as uvas devem, sim, ser orgânicas. É assim na França, onde as regras para elaboração do "vin méthode nature" existem desde 2020.

A diferença primordial, no entanto, está mesmo na etapa industrial, a vinificação, que segue métodos primitivos e não se vale de recursos tecnológicos.

As leveduras responsáveis pela fermentação não podem ser exóticas, trazidas de outro lugar —devem ser apenas aquelas encontradas nas próprias uvas e no ambiente da vinícola, o que garante uma forte conexão com o terroir.

Evita-se também a adição de sulfito (ou dióxido de enxofre), usado como conservante por sua ação antioxidante e bactericida. Nesse ponto, os produtores divergem —enquanto alguns admitem uma quantidade mínima de sulfito, os mais radicais defendem que ele passe longe de seus vinhos.

Nascido na França nos anos 1980, mais especificamente na região de Beaujolais, sul da Borgonha, o movimento do vinho natural demorou mais de duas décadas para aportar por aqui. Um dos precursores, Luis Henrique Zanini, da gaúcha Era dos Ventos, produziu seu primeiro rótulo em 2007.

"Era muito chocante, as pessoas adoravam ou odiavam. Estranhavam a cor, a acidez alta e os traços oxidativos. Acostumadas ao paladar padronizado, claro que as pessoas rejeitavam", lembra Zanini, que acompanhou de dentro o crescimento do setor.

Atualmente, com produção anual de 8.000 garrafas e rótulos que chegam a custar mais de R$ 500, Zanini comemora ter passado da fase de explicar seu trabalho.

"Até 2019, a gente atuava em um nicho de mercado, mas furamos a bolha. Chegamos a lugares que não são exclusivos da turma do vinho natural, mais pessoas estão provando."

Consultora de vinhos do restaurante Maní, que figura entre os cem melhores do mundo pelo ranking 50 Best, Gabriela Bigarelli já pôs cerca de 80 vinhos orgânicos na carta. Desses, 15 são naturais oriundos de Portugal, Argentina, França, Espanha e Chile. A proporção, segundo ela, tende a aumentar.

"O cliente do lifestyle saudável já chega perguntando se tem vinho natural. Aos que não conhecem, explicamos sobre os métodos ancestrais e 99% ficam loucos para conhecer. Quem prova gosta muito", garante.

Embora ainda polêmica entre profissionais da saúde, a promessa de eliminar a dor de cabeça no dia seguinte, culpa atribuída ao sulfito, atrai novos apreciadores. É o que diz Geoffroy De La Croix, fundador da importadora De La Croix, que trabalha exclusivamente com vinhos naturais franceses desde 2005.

O portfólio original, que era de dez rótulos, chega hoje a 260.

"As pessoas se interessam por esse tipo de vinho por três razões: é melhor para a saúde, faz bem para o planeta e entrega maior complexidade. São vinhos que envelhecem de maneira fantástica e têm sido procurados por restaurantes do Brasil inteiro", afirma.

O casal Rita Brandão e Eduardo Borges, da loja e wine bar Primitivo, em Pinheiros, também escolheu trabalhar exclusivamente com os naturais e não tem do que reclamar. A casa nasceu em 2016, em Porto Alegre (RS), mas se transferiu para São Paulo, em 2020, em busca de um público mais aberto a experimentações.

"Aqui, nos esbaldamos", confessa Borges.

Além de escolher entre 400 rótulos na prateleira, os clientes podem acompanhar a bebida com queijos, pães, charcutaria e azeites nacionais escolhidos a dedo pela dupla. O tempo da rejeição, eles garantem, ficou para trás.

"No começo, o vinho natural era mal desenvolvido. Muita gente oferecia bebidas com defeitos e dizia que era assim mesmo. Mas isso mudou. Só vendo vinhos de acabamento impecável", diz.

Já tem produtor de vinho natural fazendo sucesso até entre os turistas de São Roque, no interior de São Paulo. Bisneto de vinhateiro e fundador da Bellaquinta, Gustavo Borges tem 30 rótulos no portfólio, metade vinificada sem intervenção.

Um deles, o Palha, corte de Cabernet Franc e Cabernet Sauvignon, é vendido em garrafão de 880 ml revestido de palha, homenagem a seus antepassados, por R$ 80.

Palha, corte de cabernet franc e cabernet sauvignon da Bellaquinta, é vendido em garrafão de 880 ml revestido de palha - Divulgação

Como 70% do faturamento da Bellaquinta vem do turismo, Gustavo se empenha em ser didático com seus visitantes. Mas também ajuda bastante nessa conquista vender vinhos a partir de R$ 42, quando a grande maioria dos naturais fica na casa dos três dígitos.

Tudo indica, porém, que os preços salgados não chegam a atrapalhar o crescimento do setor. Considerada uma espécie de embaixadora informal dos vinhos de baixa intervenção no Brasil, a sommelière Lis Cereja, proprietária da Enoteca Saint Vin Saint, recebeu 1600 visitantes e 120 expositores nos dois dias da feira Naturebas, evento que ela organiza desde 2013.

À primeira edição, que reuniu apenas 20 vinhateiros dentro do restaurante, compareceram cem pessoas.

Ela aposta tanto no crescimento do mercado que está levando a feira para outros países —acontece no próximo dia 12 a primeira edição uruguaia. A ideia, adianta Lis, é expandir para outras capitais da América do Sul.

"As grandes feiras de vinhos naturais estão na Europa. Agora, queremos fomentar o mercado daqui e chegar a uma identidade latino-americana."

Outra entusiasta dos vinhos de baixa intervenção, a sommelière-chefe do grupo D.O.M., Gabriela Monteleone, reconhece que os rótulos vinificados dessa forma ainda são vítimas de preconceito.

Para a turma que torce o nariz, ela tem um recado na ponta da língua: "Falar de vinhos naturais é tão importante quanto falar de alimentação orgânica. Até grandes empresas estão apostando na fermentação espontânea em grande escala. Quem fala mal do movimento prejudica as pessoas, o mundo do vinho e o planeta."

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