O jovem enólogo japonês Issei Tomine precisa identificar um vinho em um teste às cegas para conseguir um emprego. Apenas sentindo os aromas, sem tomar um gole, ele crava a porcentagem das uvas e dispara: "Côtes de Franc, Château Le Puy, Cuvée Barthélémy 2017". Na mosca.
Enquanto isso, na França, em Châteauneuf-du-Pape, a escritora Camille tenta reorganizar seus sentidos treinados na infância pelo pai, o enólogo e crítico Alexandre Léger. Ela não pode beber álcool e precisa aprender a reconhecer rótulos com precisão, já que disputa com Tomine, ex-aluno de Léger, a herança do pai, uma adega de vinhos raros avaliada em US$ 148 milhões.
A junção de vinícolas, técnica de avaliação e rótulos com a fantasia sobre sentidos superaguçados postos à prova dá o tom de "Gotas Divinas". A nova série da Apple TV+ é uma adaptação do mangá homônimo que ajudou a impulsionar o mercado da bebida na Ásia.
Publicado entre 2004 e 2014 em 44 volumes, "Kami no Shizuku" trazia o duelo entre o filho de um crítico de vinhos recém-morto e seu pupilo mais brilhante. Os dois personagens japoneses precisavam identificar os rótulos de 12 vinhos a partir de pistas e descrições deixadas pelo enólogo numa missão tão atraente quanto inverossímil. A série segue quase o mesmo mapa, mas de maneira mais concisa.
A grande sacada dos criadores da HQ, os irmãos Shin e Yuko Kibayashi, sob o pseudônimo de Tadashi Agi, e da desenhista Shu Okimoto, foi apresentar rótulos e vinicultores reais na trama. Cada edição passava uma sensação de educação enológica aos leitores e servia como guia de compras para os mais interessados. A publicação chegou a ser lida por 300 milhões de pessoas.
As referências de "Kami no Shizuku" eram aguardadas semanalmente pelas lojas e importadoras. Na Coreia do Sul, os vendedores enfeitavam as prateleiras de vinhos com cartazes com as indicações do mangá. Vinícolas reais elogiadas na história ficcional chegavam a ter suas vendas até 130% maiores na Ásia.
Caso do então desconhecido Château Mont Perat, que, em dois dias, vendeu 600 garrafas do seu blend de Bordeaux 2001 para clientes de Taiwan. O vinho, que custava US$ 15, passou a US$ 150. O mesmo aconteceu com o Château Le Puy, da sub-região de Francs Côtes de Bordeaux: a safra 2003 se esgotou por causa da aparição no mangá. Garrafas circulavam no mercado valendo mais de US$ 1.000.
Com o sucesso, os irmãos Shin e Yuko Kibayashi abriram um clube de assinaturas de vinhos nos Estados Unidos, lançaram um game de degustação para celular e foram condecorados pelo governo francês com a Ordem do Mérito Agrícola e Ordem das Artes e das Letras.
A série tomou liberdades em relação à obra. E, apesar de algumas garrafas aparecerem ao longo da temporada, "Gotas Divinas" evita servir de promoção de rótulos reais.
"Quando criei os desafios da série, não escolhi o vinho e depois escrevi o roteiro. Eu inventava os duelos e, então, o consultor de vinhos [Sébastien Pradal] me apresentava alguns rótulos que combinavam com a descrição", diz o roteirista Quoc Dang Tran, que já assinou episódios das séries "Dix Pour Cent" e "Marianne".
Quando precisa dar destaque para certos vinhos, a ficção toma o lugar da realidade. Há uma garrafa de US$ 10 mil do Touraine-Domaine Gigon-Cépage 1990, vinho que não existe. Camille, quando treinava com seu pai na infância em Châteuneuf-du-Pape, ia para o Domaine Chassangre, vinícola ficcional, mas ambientado no famoso Château de Beaucastel. As descrições, no entanto, são todas reais, como a localização geográfica.
"Se as pessoas seguirem certos passos mostrados na série, elas vão aprender mais sobre vinhos, com certeza", diz a protagonista Fleur Geffrier, que treinou para seguir os métodos dos sommeliers, da identificação dos aromas à abertura correta das garrafas.
"Meu interesse é despertar o interesse das pessoas sobre vinho, que, no fim das contas, é sobre convivência", afirma o roteirista Dang Tran. "Você não compra um vinho caríssimo para beber sozinho na sala."
"Gotas Divinas" apresenta duas escolas na formação de um enólogo. A primeira é a mais tradicional, com Issei Tomine, interpretado por Tomohisa Yamashita, passando por cursos profissionalizantes.
No Brasil, há cursos disponíveis para quem deseja se tornar um sommelier, profissional responsável por vinhos —entre eles o da Associação Brasileira de Sommeliers.
Na maioria dos cursos, o aluno aprende a fazer a análise sensorial dos vinhos, a procedência dos rótulos, elaboração de menus e o processo básico da viticultura. Há um sistema de certificação por módulos que podem levar anos.
O outro caminho apresentado na série da Apple TV+ é o de quem começou cedo na indústria. A personagem de Camille Léger foi basicamente criada numa vinícola em Châteauneuf-du-Pape, na França, com seu pai, um famoso enólogo, servindo como mentor.
Após a separação dos pais, ela se distanciou da enologia e só voltou para tentar conquistar sua herança em forma de vinhos raros. Para isso, precisou voltar aos estudos com ajuda do livro-caixa "Le Nez du Vin" —um método que traz 54 frascos com os aromas encontrados em vinhos. Para treinar, é preciso memorizar esses aromas e tentar adivinhá-los às escuras.
O projeto é uma criação do francês Jean Lenoir, que morreu recentemente e passou o bastão para a filha, Viva Lenoir, que, assim como Camille, passou parte da vida tentando se afastar do mundo dos vinhos, mas terminou se reapaixonando pela bebida e hoje é CEO e responsável pela elaboração dos líquidos que vão nos frascos da caixa. O produto pode ser encomendado no Brasil pela De La Croix Vinhos (delacroixvinhos.com.br).
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