Descrição de chapéu Folha Mulher Mátria Brasil

Anna Romana denunciou violência física de um dos líderes da Conjuração Baiana de 1798

Costureira aproveitou investigação de crime contra coroa portuguesa para acusar ex-amante de espancamento

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Patrícia Valim

Professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é idealizadora e uma das coordenadoras do projeto Mátria Brasil

Salvador

Era 19 de setembro de 1798 quando os desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia, equivalente ao Supremo Tribunal Federal, convocaram Anna Romana Lopes do Nascimento para testemunhar sobre o caráter de João de Deus do Nascimento, um dos quatro acusados de crime de lesa-majestade de primeira cabeça, conspiração contra o regente dom João 6º e a coroa portuguesa.

Apesar do sobrenome, os dois não eram parentes, mas tinham sido amantes.

Anna Romana não foi a única mulher a depor sobre os acusados de convocar a população para uma revolução que instituiria um governo democrático na Bahia, no final do século 18, em que todos seriam irmãos, todos seriam iguais. Outras 12 mulheres foram convocadas para explicar o que sabiam sobre os acusados e o movimento.

Sobre um fundo branco, ilustração de Veridiana Scarpelli mostra mulher negra. Ela aparece da cintura para cima, usa um vestido em tons de amarelo e ocre. A parte da cintura e saia é listrada de ocre e amarelo bem claro. Nas listras ocre aparecem pequenos pontos pretos. A parte de cima tem uma estampa de grafismos amarelos sobre um fundo ocre, com decote canoa e babados nos ombros. Os braços estão apoiados na cintura, do lado esquerdo. Usa vários colares longos, uns bem fininhos em tons de vermelho, um deles com bolinhas na mesma cor, e um colar mais grosso, com listras azuis e brancas. Na cabeça, um pequeno turbante ocre e amarelo claro, com o laço aparecendo por trás da cabeça, na altura do pescoço. Usa brincos de argolas douradas nas duas orelhas. A expressão é de serenidade, com olhos castanhos bem marcantes e lábios vermelhos fechados.
Na Salvador do final do século 18, Anna Romana Lopes do Nascimento denunciou agressão do amante, um dos líderes da Conjuração Baiana de 1798 - Veridiana Scarpelli/Folhapress

Em 11 boletins manuscritos colados nas paredes de prédios públicos de Salvador, esses homens chamaram o regente de "indigno coroado", denunciaram o arbítrio dos ministros e anunciaram um programa de governo que previa a taxação justa, o mérito como critério para ocupar cargos públicos e militares em substituição da condição financeira e pureza de sangue, além da abertura dos portos para o comércio com a França revolucionária.

Como se pode imaginar, as autoridades fizeram de tudo para descobrir os líderes do movimento e aplicar-lhes a pena de morte com suplício em praça pública. Uma das estratégias de investigação foi uma série de delações premiadas, que acusavam quatro homens pardos, livres e pobres de serem os líderes do movimento.

Mas isso não foi suficiente, pois um dos boletins manuscritos informava que 676 homens estavam prontos para a revolução com o conhecimento do governador da capitania da Bahia.

Desse grupo, mais da metade era composto por militares e religiosos das ordens terceiras, mais afeitas aos pobres e desassistidos; oito comerciantes e oito homens ricos, senhores de engenho e de escravizados, membros em cargos da administração local, provando que o movimento tinha ampla legitimidade social.

quatro homens negros foram enforcados na ilustração, que mostra uma praça cheia de pessoas. soldados separam os corpos da multidão. em segundo plano, está uma grande igreja
Enforcamento de líderes da Conjuração Baiana, no Largo da Piedade, em Salvador, em ilustração de Trípoli Gaudenzi Filho - Divulgação/"A Revolta dos Búzios"

Sem poder condenar à pena capital o grupo de ricos e poderosos, que dava base de sustentação para a relação de exploração colonial, a segunda estratégia das autoridades foi convocar um conjunto de 13 mulheres para desqualificar moralmente os acusados e atestar o péssimo caráter deles.

Foi por isso que Anna Romana compareceu à casa do chanceler do tribunal para prestar depoimento sobre o ex-amante, que na época era casado com Luiza Francisca de Araújo, 30 anos, parda e liberta, mãe de seus cinco filhos, que também estava presa para depor.

Anna Romana era uma mulher bonita de 17 anos, parda, liberta, solteira, costureira e moradora na casa do seu ex-senhor, o padre João Lopes da Silva, que ficava na rua Direita, nos fundos da Igreja da Nossa Senhora da Ajuda, onde ela conheceu João de Deus do Nascimento, em setembro de 1797.

Em seu depoimento, ela disse que, logo depois do início da amizade ilícita, aceitou morar em uma casa alugada por João de Deus, onde teriam privacidade para os encontros amorosos. Mas durante os meses de relacionamento, ele não a visitava com assiduidade e, quando o fazia, estava sempre preocupado.

As autoridades interrogaram, então, se Anna Romana sabia o motivo da preocupação e se o motivo tinha causado o fim da relação deles.

Ela aproveitou a oportunidade para denunciar o acusado: afirmou que desconhecia o motivo da prisão de João de Deus, mas sabia que ele estava metido em "histórias de Francesia", ideias de liberdade e igualdade. O término da relação deles em junho de 1798, contudo, não se deu por isso, mas porque ele a espancou.

Até o momento, não sabemos o que aconteceu com Anna Romana depois de denunciar a violência física que sofreu do ex-amante.

Sabemos, porém, duas coisas que persistem em nossa história até hoje. Depois de mais de um ano de delações premiadas e interrogatórios para livrar a culpa dos ricos e poderosos, os pobres e pardos João de Deus, Lucas Dantas de Amorim, Luiz Gonzaga das Virgens e Manuel Faustino foram enforcados e tiveram seus corpos esquartejados em praça pública por serem considerados os únicos líderes de um movimento político onde todos seriam iguais.

Por fim, a denúncia pública da agressão sofrida por Anna Romana Lopes do Nascimento chama a atenção para os limites desse movimento político. Não há igualdade possível quando mulheres são espancadas até por homens que lutam por um mundo melhor.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes e, em geral, pouco conhecidas ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.