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Violência contra LGBTQIA+ em SP migra das residências para as ruas

Mais de metade dos crimes de homofobia e transfobia registrados em 2022 foram cometidos em área pública

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Fabio Turci

Jornalista, ex-correspondente da TV Globo nos EUA e produtor de conteúdo contra homotransfobia e racismo

Nos últimos anos, a violência contra a população LGBTQIA+ no estado de São Paulo sofreu uma mudança significativa: deixou de ser predominantemente doméstica, entre quatro paredes, e tornou-se escancarada, nas ruas.

A mudança pode ser observada na base de dados da SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, que reúne as informações de todos os boletins de ocorrência registrados em delegacias paulistas. No entanto, como a própria secretaria não publica esses números, os solicitei por meio da Lei de Acesso à Informação.

O levantamento que pedi abrange o período entre 2016 e 2022 (2016 foi o primeiro ano "cheio" em que a SSP incluiu a indicação de homofobia/transfobia no registro das ocorrências). Trata-se da lista de todos os crimes que, segundo os BOs, foram motivados por homofobia e/ou transfobia (ameaças, lesões corporais, injúrias, homicídios e outros). Inclui também as ocorrências enquadradas na Lei contra o Racismo (Lei 7.716/1989) que, desde 2019, pode ser aplicada para casos de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, conforme decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).

Parada do Orgulho LGBT, na av. Paulista, em São Paulo - Bruno Santos - 3.jun.2018/Folhapress

Para o período entre 2016 e 2020, os números mostram que, ano a ano, de 40% a 50% dos casos de LGBTfobia em São Paulo aconteceram em residências. A mudança começou em 2021: os crimes em áreas públicas —que, em geral, ficavam abaixo de 30% do total— passaram para 34%, ultrapassando os casos registrados em residências, que baixaram para 31% (para o que chamo de áreas públicas, somei os registros ocorridos em vias públicas, rodovias/estradas, terminais/estações e estacionamentos públicos). Outros ambientes, como comércio, escolas e internet, respondem por uma participação menor de casos de LGBTfobia.

Em 2022 a inversão se tornou ainda mais evidente. Os crimes em áreas públicas cresceram mais e passaram a ser 53% do total. Nas residências, a participação diminuiu de novo, para 20%.

O que poderia justificar tais mudanças? Entramos, aí, num exercício de análise do que vivemos no período. Não parece coincidência que isso tenha se dado exatamente nos anos pré-eleitoral e eleitoral, quando a chamada "pauta de costumes" se firmou como a principal arena de embates entre direita e esquerda. E, nessa pauta, a discussão sobre orientação sexual e identidade de gênero teve (como ainda tem) papel central. O debate foi empobrecido a ponto de a defesa de direitos fundamentais da população LGBTQIA+ ter se tornado apenas uma bandeira "de esquerda", enquanto a direita repetiu exaustivamente que o tema é uma "ideologia" que ofende a família tradicional. O próprio presidente de então, Jair Bolsonaro, foi porta-voz dessa visão.

Numa atmosfera assim, o movimento dos números sugere que agressores passaram a se sentir respaldados por esse discurso amplamente difundido e que, de certa forma, legitima a violência, já que é baseado em intolerância. Como consequência desse contexto, era esperado que homofóbicos e transfóbicos se sentissem "autorizados". Isso pode explicar o aumento das agressões em áreas públicas, na presença de outras pessoas (potenciais testemunhas) e de câmeras de segurança espalhadas pelas cidades. É confiar mais na impunidade por entender que muita gente pensa da mesma forma, inclusive autoridades.

Esse cruzamento de dados, infelizmente, não pode ser feito para o restante do Brasil por causa da escassez de estatísticas. Nos últimos três anos, me dediquei ao acompanhamento de registros de LGBTfobia em todas as 27 unidades da federação e constatei que são poucas as secretarias preparadas para informar os registros de crimes com algum detalhamento (tipo de local onde ocorreram, por exemplo). Um abismo separa São Paulo, o estado com números mais completos, dos demais. Ainda assim, nem mesmo no Mês do Orgulho LGBTQIA+, quando o tema ganha maior visibilidade, o governo paulista divulga, por iniciativa própria, esses dados. Nem a gestão atual, nem as anteriores.

São Paulo, seja como estado mais populoso do país, seja por ter as estatísticas mais completas, vem respondendo por, ao menos, 40% dos registros de homofobia e transfobia disponíveis no Brasil. Logo, qualquer observação que se faça dos casos paulistas tem relevância e impacto nacionais.

Por isso, a próxima constatação também é preocupante. Não apenas a homofobia e a transfobia tornaram-se mais escancaradas, elas também passaram a ser muito mais frequentes em São Paulo. Na comparação com o ano anterior, o total de registros em delegacias paulistas saltou 94% em 2021 e mais 47% em 2022 (os mesmos anos de debate eleitoral extremamente polarizado). As ameaças, por exemplo, mais do que dobraram entre 2020 e 2022. As injúrias quase quadruplicaram.

Até então, entre 2016 e 2020, os casos vinham caindo ou em estabilidade.

Os números dizem muito e, num dos países mais violentos do mundo contra a população LGBTQIA+, é inadmissível que apenas jornalistas ou organizações da sociedade, como a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, se preocupem em apurar e divulgar dados sobre homofobia e transfobia. Há estados em que, mesmo via Lei de Acesso à Informação, não se consegue qualquer número — porque não existe número algum. E as estatísticas são, no mínimo, um norte para políticas públicas.

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