Descrição de chapéu Todas Mátria Brasil

Baiana Anésia Cauaçú foi a primeira cangaceira a liderar o próprio bando, em 1910

Seu grupo derrotou as forças policiais em três expedições enviadas à região de Jequié, no sul do estado

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Patrícia Valim

Professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é idealizadora e uma das coordenadoras do projeto Mátria Brasil

Salvador

A participação das mulheres no cangaço ainda é um tema controverso no imaginário coletivo e pouco explorado na história brasileira.

Até hoje, Maria Bonita é considerada a primeira e a mais famosa cangaceira em razão da história de amor com seu companheiro Lampião durante o período em que o bando liderado pelo casal atuou no sertão nordestino, de 1922 a 1938, quando foram brutalmente assassinados, e suas cabeças foram expostas.

Ilustração de Mariana Waechter publicada na Folha de S.Paulo em 21 de outubro de 2023 mostra uma mulher montada em um cavalo. O fundo é verde e a ilustração é toda em tons de vermelho com traços pretos. O cavalo está de lado, com a cabeça apontada para o lado direito da cena e com as patas dianteiras levantadas. A crista é bem comprida e esvoaçante, ele tem adornos de argolas no pescoço e na cara. A sela é estampada. A mulher tem os cabelos compridos e soltos, veste calca e camisa, carrega uma espingarda nas costas e um usa cinturão de balas.
Entre 1911 a 1916, Anésia Cauaçú chefiou bando de cangaceiros no sertão de Jequié, na Bahia, contra poderosos da família Silva, chamados de rabudos, e tropas policiais - Mariana Waechter/Folhapress

Cangaceiros e cangaceiras são analisados como um fenômeno do banditismo social que atuou em regiões pobres do Nordeste com profundas desigualdades econômicas e sociais, chamadas cangaço, até meados do século 20.

Esses bandos surgiram como resposta aos mandos e desmandos de algumas famílias poderosas da região, que sujeitavam a população em razão da ausência do Estado. Justamente por isso, tentaram fazer justiça com as próprias mãos.

Engana-se, no entanto, quem pensa que os cangaceiros eram homens miseráveis e que as cangaceiras participaram do cangaço apenas para cumprir funções de esposa dos cangaceiros, como Maria Bonita.

Em 1894, na cidade de Jequié, no sul da Bahia, nasceu Anésia Adelaide de Araújo, de uma família de comerciantes e fazendeiros de gado da região.

Moça bonita de olhos azuis e cabelos longos, ela foi criada para casar e ter filhos, mas mudou seu destino quando sua família se viu às voltas com o conflito de outras duas famílias poderosas da região, os Silva (chamados de rabudos) e os Gondins (chamados de mocós). Os embates se estenderam de 1911 a 1916.

O líder dos rabudos exigiu que Augusto Cauaçú, primo de Anésia, participasse de uma emboscada contra a família Gondim. Ele se recusou e, por isso, foi assassinado. Seu corpo só foi enterrado depois de ficar exposto por dois dias.

A família Cauaçú resolveu se vingar, matou o assassino e perdeu vários familiares mortos pelos rabudos. Já casada e com uma filha, Anésia passou a usar o sobrenome da família e decidiu em 1910 criar o seu próprio bando, incluindo irmãos e cunhadas, para acabar com o poder dos rabudos na região.

Capa de "Anesia Cauaçu - Mulher-Mãe-Guerreira" (2011), livro de Márcia Couto Auad  baseado em sua dissertação de mestrado
Capa de "Anésia Cauaçu - Mulher-Mãe-Guerreira" (2011), livro de Márcia Couto Auad baseado em sua dissertação de mestrado - Reprodução

À frente de um grupo de quase cem pessoas, ela foi descrita pelos jornais da época como uma mulher bonita, corajosa e com hábitos escandalosos para a época.

Fumava e tomava cachaça com homens em público, participava de rodas de capoeira, manuseava armas de fogo com muita desenvoltura, usava calças compridas e montava a cavalo em uma sela comum no lugar do silhão (sela com estribo só de um lado para mulheres usando saias cavalgarem).

Anésia conhecia o sertão da região de Jequié como ninguém e rapidamente suas ações contra os rabudos despertaram a ira das forças policiais.

Pressionado, o governador da Bahia na época, Antônio Muniz, enviou para Jequié mais de 250 soldados em três expedições militares com a mesma ordem dada para desbaratar Canudos: capturar Anésia Cauaçú e seu bando, incluindo crianças, vivos ou mortos.

Capa de "Anesia Cauaçu - Mulher-Mãe-Guerreira" (2011), livro de Márcia Capa de "Anesia Cauaçu" (2001), romance histórico de Domingos Ailton
Capa de "Anésia Cauaçu" (2001), romance histórico de Domingos Ailton - Reprodução

Nas três expedições, ela e seu bando derrotaram as tropas baianas e deixaram seu comandante humilhado, pois Anésia arrancou um dos dedos dele e ainda conseguiu escapar.

Na época, existiam muitos boatos sobre a derrota das tropas para uma mulher, e uma ficção histórica escrita por Domingos Ailton forneceu uma explicação ótima: Anésia Cauaçú só conseguiu escapar porque ela "se invultava", tinha a capacidade de se transformar em planta ou pedra para escapar da perseguição policial.

Quem nos contou toda essa história foi a própria Anésia em uma entrevista publicada na primeira página da edição de 25 de outubro de 1916 do jornal A Tarde.

Na ocasião, ela descreveu a Conflagração Sertaneja, nome que o governador da Bahia deu ao conflito do bando dos Cauaçú no sertão de Jequié, e se deixou fotografar ao lado da filha, muito provavelmente para chamar a atenção para a violência das tropas baianas e dos rabudos no sertão.

Após sucessivas derrotas para os Cauaçú, as tropas policiais e o bando dos rabudos começaram a perseguição contra a população local. Como vingança contra quem apoiava o bando liderado por Anésia, as forças policiais saquearam pequenos comerciantes da região, roubaram animais, mataram homens, violentaram mulheres e torturaram crianças.

fotografia mostra reprodução de uma página do jornal A Tarde de 25 de outubro de 1916, com destaque para o título 'O complot da polícia e dos jagunços - a empreitada de crimes' e para uma foto em preto e branco de Anesia e sua filha
Edição de 25 de outubro de 1916 do jornal A Tarde destaca entrevista com a cangaceira Anésia Cauaçú - Reprodução

Enquanto isso, Anésia, seu marido e sua filha se escondiam na sede da fazenda de um amigo do pai dela. Durante a madrugada, quando todos dormiam, esse amigo traiu a confiança dos Cauaçú e os entregou para as tropas policiais.

Anésia só foi capturada porque dormia. Ficou presa por alguns dias e, depois de ser solta, não deixou que ninguém falasse por ela. Resolveu contar sua própria história para a imprensa local.

Até o momento, não sabemos o que aconteceu com Anésia Cauaçú e sua família depois disso. Sabemos apenas que ela viveu muito e deve ter contado sua história para várias pessoas até morrer sozinha em 1986, aos 92 anos. A história da primeira cangaceira a liderar seu próprio bando.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes e, em geral, pouco conhecidas ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje.

Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do publicado inicialmente, Augusto Cauaçú é primo de Anésia, e não o pai, que se chamava Rufino. Além disso, não é um fato histórico que o comandante da polícia baiana na época tenha afirmado que Anésia só conseguiu escapar das tropas porque ela "se invultava", ou seja, tinha a capacidade de se transformar em planta ou pedra para fugir da perseguição policial. Trata-se de uma lenda lembrada em “Anésia Cauaçu”, romance histórico de Domingos Ailton.

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