Criação de filhos muda entre gerações e abre caminho para educação mais respeitosa

Novo olhar sobre a infância e acesso à informação defasaram antigas formas de orientar crianças

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Ribeirão Preto

Sílvia Rosa de Almeida, 67, foi mãe aos 19 anos, teve três filhos "em escadinha" e os criou com ajuda da avó materna deles. A primogênita, Karla Danitza de Almeida, 48, por sua vez, teve dois meninos —o primeiro aos 20 anos e o segundo dez anos depois— e contou com as duas mulheres para criá-los.

Os filhos de Danitza ainda não são pais, mas o mais velho, Klaus Almeida, 28, já vive o dia a dia da parentalidade com a enteada Beatriz, 9, que tem cuidadores de duas famílias, a materna e a paterna.

Apesar de seguirem a mesma linha de afeto na criação, Sílvia, Danitza e Klaus tiveram formatos de família e contextos diferentes em suas jornadas como pais. Para especialistas ouvidos pela Folha, muitas das discordâncias e críticas na forma de criar crianças derivam da falta de compreensão dos desafios existentes para cada geração.

"A minha avó teve sete filhos, três deles faleceram, dois desapareceram. Precisava trabalhar como lavadeira, sendo uma pessoa semianalfabeta e nem família por perto para dar conta da criação de todos", lembra Danitza.

A agente cultural Karla Danitza de Almeida, 48, segura um bichinho de pelúcia que foi de sua avó - Karime Xavier/Folhapress

O conhecimento sobre o desenvolvimento infantil é outro ponto que tornou certas práticas defasadas, como autoritarismo, a falta de diálogo com os filhos e o castigo.

"A forma que criei os meus filhos tem um pouco de novos lugares e novas liberdades. Quando olho para trás, percebo inicialmente que minha mãe e minha avó tinham um tempo menor, porque a necessidade do trabalho para dar conta de toda a família era sempre o mais imediato", diz Danitza, que é agente cultural.

Diego Silva, pai, educador parental e criador do perfil Parentalidade Preta, reforça que as diferenças não surgem só por causa do tempo entre as gerações, mas também por aspectos sociais e históricos.

"Olhando para o contexto da minha abordagem, para a educação parental (que é racializada), não posso concordar com o conceito de universal, pois isso acabaria apagando algumas subjetividades estruturais da nossa constituição social", diz Silva.

O educador pontua que os povos originários daqui e de outras partes do mundo, sempre tiveram a criança como foco central da cultura, uma vez que ela seria a continuidade da comunidade. A infância, porém, só seria validada como digna de cuidado especial no Ocidente a partir do século 18, com o aburguesamento da família e a industrialização do consumo.

Para o educador, o processo de urbanização recente resultou em núcleos de família menores e mais isolados, reorganizando a parentalidade.

"Ontem tínhamos nossos parentes morando perto, junto, para dar conta das crianças e, consequentemente, aliviando um pouco a carga e ensinando coisas diferentes", destaca.

Entender que a tecnologia avança e qual o lugar delas na vida das próximas gerações é outro desafio. "A minha geração de pais e mães (que foram crianças na década de 1990) deve estar se perguntando isso também: como garantir uma transição segura do analógico para o digital? Porque ela precisa de fato acontecer", diz Silva.

Embora integrem processos naturais da vida, essas mudanças demandam, para Silva, uma maior preocupação dos adultos com o uso de ferramentas para entender os processos cognitivos de crescimento, que passa por entender também a criação que os pais receberam.

"O conhecimento e o acolhimento desses processos são a melhor maneira de romper ciclos. Costumo usar uma frase: 'Vou me manter calmo pros meus filhos explodirem tranquilos'. É possível fazer isso sempre? Óbvio que não. Mas a gente tenta sempre. É sobre tentar", afirma.

Klaus, que é designer, diz que nunca recebeu reprimendas da mãe e da avó quanto à forma como educa a enteada. Contudo, lidar com tantas opiniões envolvidas (vindas da mãe, do pai, dos avós, da família de Klaus e dele próprio) foi algo inédito, ao qual ele precisou se adaptar.

"Minha bisavó era com quem eu passava mais tempo e sempre me deu muito carinho e atenção. Tento passar muito do que recebi. A Beatriz mantém uma ótima relação com a família paterna. E como ela convive com a gente uma grande parte da vida, oriento sobre pontos bons e ruins, sempre deixando que tome suas atitudes, que veja as consequências e descubra pela experiência", relata.

A família de Sílvia, no tempo dela, também era grande como a do neto, mas em um único núcleo, composto por bisavó, avó, mãe, tios, netos e sobrinhos. Para ela, que trabalhou de babá e em serviços domésticos junto da mãe desde criança, a educação trouxe uma transformação importante.

"Fiz até o ensino médio. Lembro que tínhamos muito pouco, mas sempre gostei de leitura e a primeira coisa que dei para eles [os filhos] foi uma carteirinha de biblioteca para que fizessem os trabalhos escolares." Sobre as novas gerações, Sílvia ressente a perda de alguns costumes, como "pedir a benção" aos mais velhos e chamar de "vovó", e se preocupa que os novos pais talvez deixem de dar limites importantes.

"Por algum período da vida pode ter nos faltado tudo de material, mas o amor foi grande e acho que para a vida de meus filhos e netos teve boas consequências. Hoje vejo que muitas vezes os pais terceirizam esse tempo de educação e de amor colocando na mão dos filhos celulares, computadores, coisas modernas que não tínhamos no meu tempo ou no que criei meus filhos", avalia.

A escritora Bete Rodrigues, mãe, tradutora e autora de livros sobre parentalidade e infantis, é trainer em disciplina positiva e diz que as relações familiares e o mundo de fato mudaram, mas que isso abriu espaço para uma educação mais respeitosa.

Rodrigues aponta o digital como a grande mudança desta geração, convergindo diversas ferramentas para uma única tela que cabe no bolso e que antes, além de exigirem aparelhos diferentes, não nos acompanhavam a todo momento.

"Isso certamente muda, inclusive, toda a nossa relação com o lazer. O mesmo aparelho é um instrumento de trabalho, de estudo, de comunicação. As relações estão no mundo virtual, muda também todo o desenvolvimento de habilidades sociais", pondera a autora.

Na outra ponta, teria ocorrido uma alteração importante nos padrões e nos papéis familiares, permitindo aproximar mais os homens dos filhos, bem como o exercício de uma criação menos preconceituosa e competitiva. Nesta geração, segundo Rodrigues, até as fake news exigem que sejamos pais melhores, ensinando nossos filhos a terem valores morais pela reflexão e não apenas pela religião, como era antes.

"Os adultos são igualmente responsáveis pelas contas e pela organização do dia a dia da família. Então a paternidade é exercida não só naquele papel de apenas provedor. Temos ainda todos os tipos de famílias, respeitadas e aceitas, casais homoafetivos que escolhem adotar ou gerar seus filhos. As crianças crescem com modelos mais equilibrados, mais humanos", afirma.

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