'A Covid não foi embora', afirma ex-diretor do sistema de saúde pública do Reino Unido

Para Nigel Crisp, nova onda de casos representa que outras doenças serão negligenciadas; maior cooperação global é necessária

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São Paulo

A Europa vê uma nova onda de casos de Covid-19. Dentre os recém-infectados, está Nigel Crisp, ex-diretor-executivo do NHS (Serviço Nacional de Saúde, espécie de SUS britânico) e ex-secretário de Saúde do Reino Unido.

"Testei positivo para [a Covid] há duas horas", afirma Crisp em entrevista por email à Folha realizada nesta sexta (4).

Crisp fala nesta segunda (7) no Conahp (Congresso Nacional de Hospitais Privados), que ocorre em São Paulo.

Homem brando de terno com o fundo de um objeto de madeira
Nigel Crisp, ex-diretor do NHS. Para ele, a pandemia de Covid-19 ainda não acabou e representa um perigo para a saúde mundial - Reprodução

O ex-diretor do NHS ainda destacou os principais desafios na área da saúde que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) precisará enfrentar nos próximos quatro anos. A Covid é citada, assim como diminuir a escassez de profissionais de saúde e aumentar a cooperação internacional para mitigar problemas de saúde global.

Um desses exemplos de cooperação seria entre o SUS e o NHS, dois sistemas de referência em saúde pública. Para Crisp, a colaboração entre Brasil e Reino Unido nessa área existe, mas é aquém do desejado. "Todos podemos aprender uns com os outros", afirma.

Ondas de novos casos de Covid foram registradas, como na Europa. O cenário representa um risco para a saúde global? Sim. A Covid não foi embora. Na verdade, testei positivo para ela há duas horas!

Nossa preocupação na Europa é que teremos aumento nas infecções por Covid durante o inverno, ao mesmo tempo em que cresce a gripe (que tem sido baixa nos últimos anos e provavelmente se espalhará este ano), bem como outros problemas típicos do inverno. Isso resulta em enormes pressões sobre os serviços de saúde.

Como nas ondas de Covid de 2020 e 2021, significa que outras condições são negligenciadas. Doenças não transmissíveis –câncer, doenças cardíacas, diabetes e outras– foram particularmente afetadas. O mesmo acontece com as cirurgias eletivas –levando a níveis crescentes de incapacidade e mais pessoas incapazes de trabalhar.

Afeta principalmente os mais pobres e marginalizados da sociedade comparado aos mais ricos. Mantém as pessoas afastadas do trabalho e prejudica a economia. Significa que os países mais ricos do mundo serão mais introspectivos e menos dispostos a apoiar outros países de renda baixa e média.

Toda pandemia tem grandes impactos sociais e econômicos. Essa não acabou e continua sendo uma ameaça à saúde global.

Mesmo com essa nova onda, a pandemia de Covid-19 arrefeceu. A OMS já disse que o fim dela pode estar próximo. O presidente dos EUA, Joe Biden, já até declarou que a pandemia foi superada. Para o sr, a emergência sanitária acabou? Não. No entanto, estamos mais perto do fim do que do começo e precisamos redefinir nossos sistemas de saúde usando todo o conhecimento que adquirimos com essa pandemia –sobre desenvolvimento de vacinas, tratamento, vigilância, preparação para futuras pandemias– e reconhecer os erros em torno da preparação, tempo de resposta, cooperação entre regiões e a nível global e corrigi-los para o futuro. Precisamos colocar nossos sistemas de saúde em pleno funcionamento.

A gestão da pandemia no Brasil teve muitos problemas, como atrasos na vacinação e defesa de tratamentos ineficazes contra a doença. O que o Brasil e outros países podem aprender com isso? Assim como dito acima, identifique os problemas claramente (não finja que eles não aconteceram –temos um inquérito formal conduzido por um juiz em andamento no Reino Unido, que está analisando como o inquérito foi gerenciado e as decisões tomadas por políticos, líderes de saúde e cientistas). Aprenda com a experiência de outras pessoas ao redor do mundo, fortaleça os sistemas de resposta global em todos os níveis, desde vigilância até relatórios e desenvolvimento rápido e compartilhamento de dados e conhecimento.

O Brasil passou por uma eleição presidencial recentemente. O atual presidente, Jair Bolsonaro, não foi reeleito. Lula, o presidente eleito, assume a presidência em 2023. Quais são os maiores desafios que o próximo governo do Brasil deve enfrentar em relação à saúde pública?

  • Covid –como explicado acima– lidando com qualquer ressurgimento, aprendendo as lições, reparando os danos ao sistema de saúde e outros serviços, preparando-se para futuras pandemias.
  • Combater a escassez de todos os diferentes grupos de profissionais de saúde –este é um dos maiores problemas global.
  • Desenvolver uma nova abordagem para a saúde, o que inclui: combate a doenças e acidentes através dos serviços de saúde; prevenção de doenças e acidentes, abordando a causa da doença; e desenvolvimento de saúde, o que é diferente de prevenção porque se preocupa com as causas. Trata-se de criar as condições para que as pessoas sejam saudáveis —em suas casas, comunidades, escolas e locais de trabalho.
  • Trabalhar com a OMS (Organização Mundial da Saúde) e outros órgãos internacionais no desenvolvimento de uma melhor cooperação.

Em seu livro "Turning the world upside down again" (Virando o mundo de cabeça para baixo novamente), o sr. explora como os países ricos podem aprender sobre gestão de saúde das regiões mais pobres. Como a realidade brasileira pode contribuir com isso? O Brasil criou um sistema de saúde da família muito interessante, incluindo a nomeação de agentes comunitários de saúde.

Aqui no Reino Unido, nomeamos recentemente alguns agentes de saúde inspirados no exemplo brasileiro. Estão até sendo monitorados por agentes brasileiros! Espero que vejamos isso expandido nos próximos anos como uma parte essencial da atenção primária.

Reino Unido e Brasil têm um ponto comum de saúde pública por conta dos sistemas públicos de saúde: o NHS e o SUS, respectivamente. Como está a cooperação entre os dois países para melhorar esses sistemas? Acho que há relativamente pouca cooperação entre os dois —embora o exemplo acima mostre que há espaço para isso. Todos podemos aprender uns com outros.

Espero que o Brasil e o Reino Unido, ambos sob nova liderança, trabalhem juntos e com outros países para promover a solidariedade e o compartilhamento global. É vital para o futuro de todos nós.

O Brasil possui um sistema público de vacinação reconhecido mundialmente, o PNI. No entanto, o país luta para alcançar altos níveis de cobertura de diferentes vacinas, como contra a poliomielite. Isso é uma particularidade do Brasil ou outros países também enfrentam o desafio de vacinar massivamente a população? Esse é um problema muito comum. Existem problemas logísticos em um país muito grande como o Brasil, principalmente para atingir as populações mais remotas e vulneráveis.

Tão importante quanto, há uma grande quantidade de desinformação, o que significa que algumas pessoas estão relutantes em ser vacinadas. Isso é extremamente prejudicial para si e para os outros.

O Brasil, com a floresta amazônica, é peça central no controle das mudanças climáticas, mas vem registrando altos índices de desmatamento. Como isso representa um problema para a saúde global? Esse é um enorme problema. As mudanças climáticas afetam nossa saúde global de várias maneiras diferentes –desde a mudança dos padrões de doenças até a perda de terras agrícolas, escassez de água, migração humana em massa, aumento do nível do mar e danos econômicos. O Brasil tem um papel fundamental para ajudar a mitigar os danos.


Raio-X

Lorde Nigel Crisp, 70

Formado em filosofia pela Universidade de Cambridge, Lorde Nigel Crisp é um membro independente da Câmara dos Lordes, no Parlamento do Reino Unido, onde co-preside o Grupo Parlamentar de Todos os Partidos sobre Saúde Global. Ele também co-preside a campanha Nursing Now, que busca melhorar a prática de enfermagem de forma global. Antes disso, foi diretor executivo do NHS britânico e secretário permanente do Departamento de Saúde do Reino Unido.

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