Descrição de chapéu Folha, 100 Semana de 1922

'Alguma coisa tinha de ser feita', disse Anita Malfatti à Folha sobre Semana de 1922

Em 1962, ao lado de Di Cavalcanti e Paulo Mendes de Almeida, artista recordou o evento, hoje centenário

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São Paulo

Há cem anos, um grupo de jovens provavelmente andava inquieto pelas ruas de São Paulo, às voltas com os últimos preparativos para um evento que tinha a pretensão de chacoalhar o cenário artístico da cidade.

Na noite do dia seguinte, uma segunda-feira, 13 de fevereiro, o Theatro Municipal receberia o vernissage da Semana de Arte Moderna.

Um século depois, as consequências daqueles encontros são revisitadas em debates e lançamentos —não necessariamente em tom laudatório.

Em uma série de textos para a Folha, Ruy Castro, jornalista, escritor e colunista do jornal, tem defendido a tese de que os modernistas de São Paulo não foram tão importantes quanto a história que se ergueu ao seu redor quer supor.

Para o autor, a Semana dormia o sono do esquecimento, ou quase isso, até 1972, tendo sido resgatada aos 50 anos pelo regime militar no bojo das celebrações do sesquicentenário da Independência.

Moderno mesmo, diz, era o Rio, a feérica capital nacional, com seu festival de luzes elétricas, de salões dançantes, melindrosas, cinemas, jornais e revistas em que pululavam escritores e escritoras registrando o febril ambiente —que ele reconstrói, com sua verve de biógrafo, em dois livros, "Metrópole à Beira-Mar" e "Vozes da Metrópole", ambos da Companhia das Letras.

O historiador da arte Rafael Cardoso, por sua vez, analisa os mitos historiográficos em torno da Semana. Para ele, a ideia de que o evento paulistano foi um ponto de inflexão cultural é reducionista. Essa visão, argumenta, ignora manifestações artísticas anteriores e de fora de São Paulo.

Cardoso traça a linha de construção dessa compreensão em "Modernidade em Preto e Branco - Arte e Imagem, Raça e Identidade no Brasil", também lançado pela Companhia das Letras.

A recuperação da Semana, se não se deu no regime Médici, como argumenta Ruy Castro, se liga outro momento político, o do fim do Estado Novo, em 1945. A partir daí, com o impulso dos jovens críticos do Grupo Clima, como Antonio Candido e Lourival Gomes Machado, se construiria a ideia da Semana como fundadora da cultura nacional.

Hoje, olhando para trás, podem-se estabelecer essas linhas de força. Mas talvez em 1962, quando a Semana era uma jovem senhora de 40 anos e alguns de seus participantes ainda eram vivos, não fosse possível prever quanto se continuaria a falar dela.

Na Folha de 8 de fevereiro daquele ano, o repórter Ivo Zanini recolheu depoimentos de Anita Malfatti e Di Cavalcanti —ela, considerada a precursora do modernismo nas artes plásticas do país, desde sua exposição de 1917; ele, jovem pintor, idealizador da festividade no Municipal. Participou também o crítico Paulo Mendes de Almeida.

Comprovando que não se imaginava que aqueles encontros fossem reverberar por tanto tempo, o texto, na última página da Ilustrada, se intitulava "Discutida ainda em nossos dias, completa 40 anos a ‘Semana de Arte Moderna’".

Sem nenhum outro intuito que não o de combater os conservadores da época e de criar alguma coisa de novo nas várias manifestações artísticas, eclodia em São Paulo, há 40 anos, movimento ainda hoje discutido e que logo depois de iniciado teve grande repercussão —a Semana de Arte Moderna.

Durante 8 dias —de 9 a 16 de fevereiro de 1922— o Teatro Municipal serviu de palco aos jovens intelectuais, então chamados de "futuristas", que, inconformados com o academismo reinante na literatura, na música e nas artes plásticas, resolveram abrir trincheiras em busca de um movimento renovador.

E o conseguiram, não obstante a ferrenha oposição de muitos, conforme registram crônicas, notícias e outras publicações da época.

O grupo vanguardista —Graça Aranha, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Ronald de Carvalho, Renato de Almeida, Ribeiro Couto e Guilherme de Almeida, na literatura; Villa-Lobos, na musica; Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Zina Aita, John Graz, Ferrignac, Ian de Almeida Prado e Martins Ribeiro, na pintura; Victor Brecheret e W. Haerberz, na escultura; e Antonio Moya e George Przrember, na arquitetura —permaneceu unido, resistindo às investidas dos que chegaram a classificar o movimento como sendo de "loucos" e de "irresponsáveis". E foi graças a esse elo que a Semana de 22 alcançou o objetivo visado: despertar a consciência dos artistas em formação ou veteranos para a grande batalha —a da renovação das artes.

Anita, a pioneira

"O que eu penso da Semana de 22? Foi alguma coisa de inesquecível, que sacudiu os meios artísticos de todo o país. E mais do que justo, porque era realmente impossível tolerar-se o academismo, a inércia, o mau gosto da época. Alguma coisa tinha de ser feita. Assim, eu me orgulho de ter contribuído com uma parcela para o êxito do movimento", são expressões da pintora Anita Malfatti, apontada como a pioneira da arte moderna no Brasil.

Repousando em sua casa de campo, no município de Diadema, a artista —que estudou na Alemanha e frequentou os grandes ateliês da França, Itália e dos EUA— revela que a Semana de 22 foi o que houve de mais combatido na época.

"Mas o nosso grupinho —salienta —manteve-se despreocupado e com isso nos impusemos". A título de curiosidade, ela informa que era comum encontrarem colados atrás dos quadros expostos no saguão do Teatro Municipal "bilhetinhos desaforados e alguns até inconvenientes".

Contra o abstrato

Enquanto mostra ao repórter algumas das numerosas pinturas que ainda conserva, a artista paulistana assinala que, embora o movimento de 1922 visasse mudança do panorama artístico, no tocante à pintura, jamais se pensou que poderia descambar para o grau de abstracionismo que hoje se verifica.

"O que mais estranho não é propriamente a repetição que se nota na quase totalidade dos artistas abstracionistas, pois isso se transformou num fenômeno universal, mas sim o fato de o Brasil ser riquíssimo em temas autóctones —e tão poucos artistas os aproveitam com categoria. Com isso, à exceção de uma minoria que luta pela autêntica arte nacional —e eu me sinto incluída entre eles —a maioria não faz outra coisa senão repetir, nada criando.

Uma das causas que está a provocar essa situação é a influencia comercial: porque a preocupação de muitos artistas é a de apenas vender, deixando para segundo plano a arte em si, a pesquisa".

Ainda procurando

Anita Malfatti diz que ela própria continua procurando resolver o problema da autêntica arte nacional.

Seus quadros não a desmentem; os temas regionais ali sempre estão presentes. Não faltam em suas pinturas festas da roca, gente do campo, orações entre caboclos, comemorações juninas etc. A artista ainda hoje pinta, embora sua primeira exposição, na rua Libero Badaró, em 1917, causasse escândalo pelo "modernismo" de suas linhas.

Sentada numa cadeira de balanço, Anita traça figuras, casas, árvores, balões de São João, santos e meninos de cor esquálida com a mesma disposição e dedicação de há meio seculo —garante a pintora.

"O dia em que eu parar de pintar pode anotar, eu morro" —diz Anita com os olhos bem abertos. Ela gostaria (e tem fé mesmo) de viver como a "Grandma" Moses, célebre pintora norte-americana falecida há poucos meses, com 101 anos: lidar com sua arte até o ultimo sopro de vida.

Di: sem definição.

Outro "sobrevivente" do movimento de reação é o pintor carioca Emiliano Di Cavalcanti. A pergunta como definiria a Semana após quatro décadas de sua realização, respondeu: "Cabe aos críticos definir, passados os 40 anos, a realização artística de 1922 e suas consequências. Nunca pude definir precisamente o que foi a Semana e como ela atua dentro de mim mesmo. Só sei senti-la que é diferente. Sinto-a como motivo categórico de afirmação na minha personalidade, de moço turbulento e afirmação que me ensinou a perseverar nos motivos que me levaram a realizá-la".

Di, que já completou 65 anos (45 de pintura), resguarda em suas obras as seguintes "marcas registradas": a) Luta pela liberdade de expressão; e b) sentimento nacional. Sua opinião é de que a Semana abriu um novo caminho na arte, "desafogando o trânsito na velha estrada do academismo".

Para libertar

Artista dos mais apreciados e discutidos, Di Cavalcanti - que certa vez disse de si: "Eu sou escritor, poeta bissexto e caricaturista" —fala depois sobre as consequências do movimento de 1922, de maneira especial quanto à influencia da Semana no aparecimento de numerosos artistas abstratos.

"Conhecíamos os movimentos não formalistas das artes na Europa, cujas primeiras manifestações já datavam de alguns anos. Mas o nosso movimento não tinha por finalidade indicar caminhos ou trilhar determinada escola de arte. A finalidade era libertar o artista de um atraso acadêmico. Se os artistas brasileiros ou estrangeiros, habitando o Brasil, são atualmente na maioria abstracionistas, é porque mediocremente apegam-se a um novo academismo, demonstrando não possuírem o espírito que dominou a Semana de 1922.

Arte brasileira

E existe em consequência da Semana de Arte Moderna a autêntica arte brasileira?

"É um absurdo", diz o artista, "perguntar, se num país como o Brasil, se há arte autenticamente brasileira, tratando-se da arte como fenômeno cultural."

Para melhor compreensão do seu ponto de vista, acrescenta: "Toda tendência cultural no Brasil é uma procura de aproximação com o pensamento europeu. Nosso problema de desenvolvimento cultural é o de alcançar o nível das altas culturas europeias, como para a Renascença foi atingir o nível superior do pensamento greco-latino. Ser autenticamente brasileiro, em arte, é assimilar o conhecimento ao sentimento, é desenvolver a aquisição cultural, dentro do quadro das realizações propriamente nacionais."

Di Cavalcanti pode ser assim "pintado": 1) acha que nasceu pintor; 2) escreveu "Viagem de Minha Vida", em 2 volumes; 3) admite que sofreu influência da escola de Paris, onde plasmou sua formação estética; 4) procura ser "acima de tudo Di Cavalcanti"; 5) gosta demais de poesias, especialmente de Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Carlos Drummond de Andrade, Cassiano Ricardo, Frederico Schimidt e João Cabral; 6) sua primeira exposição foi em 1916, no Rio, no Salão dos Humoristas.

Emancipação das artes

Como testemunha da Semana de Arte Moderna, o intelectual, crítico e divulgador das artes plásticas Paulo Mendes de Almeida deu este depoimento: "A Semana constituiu primeiro movimento coletivo no sentido da emancipação das artes e da inteligência brasileiras. Naqueles dias agitados de 22, concertos, conferências, recitativos, bailados e uma exposição de artes plásticas compuseram o programa do certame, que teve por sede o Teatro Municipal, e tudo se passou entre vaias, protestos, discussões e turbulências, nas noites quietas da então pacata cidade".

Após citar os nomes daqueles que sacudiram o academismo então reinante, sugere a transcrição de breve depoimento de Mário de Andrade, ao lhe ser perguntado: "Quem teve a ideia da Semana? O texto do autor de "Macunaíma" tem este começo:

"Quem teve a ideia da Semanas de Arte Moderna? Por mim não sei quem foi, nunca soube, só posso garantir que não fui eu. O movimento, alastrando-se aos poucos, já se tornara uma espécie de escândalo público permanente.

Já tínhamos lido nossos versos no Rio de Janeiro; e numa leitura principal, em casa de Ronald de Carvalho, onde também estavam Ribeiro Couto e Renato de Almeida, numa atmosfera de simpatia, "Pauliceia Desvairada" obtinha o consentimento de Manuel Bandeira, que em 1919 ensaiara os seus primeiros versos livres no "Carnaval". E eis que Graça Aranha, célebre, trazendo da Europa a sua "Estética da Vida", vai a São Paulo, e procura nos conhecer e agrupar em torno de sua filosofia. Nós nos ríamos um bocado da "Estética da Vida" que ainda atacava certos modernos europeus da nossa admiração, mas aderimos francamente ao mestre. E alguém lançou a ideia de se fazer uma semana de arte moderna, com exposição de artes plásticas, concertos, leituras de livros e conferências explicativas. Foi o próprio Graça Aranha? Foi Di Cavalcanti?..."

Porém, o que importava era poder realizar essa ideia, além de audaciosa, dispendiosíssima. E o fator verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado. E só mesmo uma grande figura como ele e uma cidade grande mas provinciana como São Paulo poderiam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana.

Paulo Mendes de Almeida assevera que, pelas afirmações de Mário de Andrade, foi um pouco de cada um daqueles reformadores que ajudaram a objetivação de uma ideia logo aceita. Frisa, contudo: "Não devemos fiar-nos na modéstia com que Mário de Andrade omite sua própria e importante contribuição".

O mais importante

Para Paulo Mendes de Almeida o mais importante não é apurar quem teve a ideia da realização da Semana, mas diagnosticar o que o movimento pretendia, o que representava, o que alcançaria. Para tanto, esclarece que não será tarefa fácil.

"Em primeiro lugar, era o que pudesse haver de mais heterogêneo, quando aspirava a ser principalmente heteróclita (que se desvia das regras da arte), como proclamavam os mais afoitos. Nela, se pode dizer, somente num ponto houve uma quase unidade ideológica: o da necessidade de mudar. De mudar, sem que se precisasse bem o que, nem para onde. Foi isso o que lhe deu o caráter eminentemente destrutivo, sendo sob esse aspecto, de resto, que ela ganha para nós extraordinária importância. Porque o ideário mesmo era o que de mais vago se possa imaginar. Verdade é que constituía quase uma constante o sentimento nacionalista, o desejo de redescobrir, ou melhor, de descobrir afinal o Brasil. Na realidade, não conseguiram fazê-lo, pois que somente mais tarde o Brasil nos seria efetivamente desvendado, pela equipe de homens da geração de 1930, numa tarefa a que o sr. Gilberto Freyre veio dar explicação, consciência e conteúdo em termos de sociologia."

O safanão

Enfim, após outras considerações Paulo Mendes de Almeida afirma que se sentia à vontade para afirmar que, não obstante todas as suas falhas, a Semana de Arte Moderna constituiu evento da maior relevância.

"O movimento já não era um gesto isolado de rebeldia que presenciávamos, mas um clamor em coro, um movimento de grupo, em que se integravam importantes personalidades, e que deu, positivamente, um safanão naquele adormecido em berço esplêndido Brasil das letras das artes e do pensamento."

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