O papa Francisco recebeu nesta sexta-feira (24), em Roma, uma comitiva brasileira que apresentou dados da violência sexual contra crianças e adolescentes no país. No encontro, o pontífice ouviu o relato de uma mulher que sofreu abuso na infância e apoiou o movimento #AgoraVcSabe, criado pelo Instituto Liberta para que adultos rompam o silêncio sobre o tema.
Sem poder ficar em pé pela artrite que afeta um ligamento do joelho direito, aos 85 anos, o papa cumprimentou os visitantes que vieram na companhia de seu amigo, Isaac Sacca, rabino da comunidade sefardita de Buenos Aires.
"A expectativa era sensibilizar o papa sobre o assunto", diz Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, ao lembrar que a tensão da equipe na antessala do Vaticano foi logo dissolvida pela recepção afetuosa de Francisco. Conversaram bem, segundo ela, "em portunhol".
"Falei uns dez minutos, contei o que temos feito para combater essa violência e percebi que ele conhece bem o assunto, pois reparou que a média de casos intrafamiliares no Brasil é maior que a mundial."
O Anuário de Violências do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2021, indica que, a cada hora, quatro meninas menores de 13 anos são estupradas no país e 67% dos casos acontecem dentro de casa.
Quando a advogada disse que famílias se calam perante abusos porque entendem que o silêncio protege a unidade familiar –quando só protege o abusador e perpetua a violência—o papa interveio.
"Claro, hay que hablar", disse em espanhol. E seguiu: "A fala cura, precisamos tirar os esqueletos do armário."
O momento ficou marcado para a comitiva como uma validação do trabalho do instituto, que fez duas passeatas virtuais com depoimentos de vítimas neste ano. "Foi incrível e nos deu coragem para seguir convidando adultos a romperem o silêncio", afirma Luciana.
Na sequência, uma das embaixadoras da causa, Lyvia Montezano, foi chamada a dar seu depoimento como ativista.
"Foi a primeira vez que relatei o abuso em público, e não por vídeo, com pessoas que não conhecia", lembra a administradora, que é casada com o presidente do BNDES, Gustavo Montezano.
"Contei que tinha sido abusada aos 5 anos e que, assim que tive uma filha, percebi que teria que lidar com esse trauma para ser uma mãe melhor."
O papa, segundo ela, se orgulhou da sua coragem e insistiu que era preciso romper o silêncio. "Comentei que Deus tinha sido meu melhor amigo nesse processo", diz Lyvia, que compreende o encontro como um pequeno milagre.
"Se eu tinha alguma dúvida de que estava fazendo a coisa certa, essa oportunidade me fez entender isso de uma vez por todas", completa ela, que é católica de batismo e hoje se diz espiritualizada.
Há um ano, o Vaticano endureceu as regras contra clérigos que abusam de menores ou de adultos vulneráveis, usam as posições de autoridade para forçar atos sexuais e ordenam mulheres a cargos eclesiásticos.
"O papa tem enfrentado com coragem esse assunto", afirma Luciana Temer, que também puxou assunto sobre pedofilia na audiência.
A expectativa do Liberta agora é que o pontífice possa se envolver e que leve mensagens sobre o tema não só para debates internos, mas para famílias.
"Falar de pedofilia na Igreja desvia o foco de onde a violência é maior, que é na família, são os dados que temos", diz a advogada.
Ao final da audiência, que começou às 11h (horário local) e durou 30 minutos, o papa recebeu um pen drive com o documentário "Um Crime entre Nós" (dirigido por Adriana Yañez e produzido pela Maria Farinha Filmes), legendado em espanhol, e o vídeo da passeata virtual da campanha #AgoraVcSabe.
"Quebrou a tensão e ainda fez piada", lembra Luciana aos risos. "Disse que tinha uma dúvida importante: cachaça é água?". Depois sorriu e agradeceu a comitiva.
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