'Pedófilos adoram capa de cordeiro', diz influenciadora cristã que ensina prevenção de abusos

A psicóloga Leiliane Rocha conquistou 1 milhão de seguidores na internet pregando educação sexual infantil, inclusive entre evangélicos

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São Paulo (SP)

A psicóloga Leiliane Rocha, 38, conquistou mais de 1 milhão de seguidores online falando de um assunto que muitos preferem evitar: abusos sexuais contra crianças e adolescentes.

A pernambucana, que se especializou em sexualidade humana e costumava dar cursos presenciais sobre o tema, criou um perfil no Instagram há quatro anos, quando nem sabia o que era essa rede social, por sugestão de uma amiga.

Dois meses depois, viralizou o primeiro post: no conteúdo, ela desaconselhava os casais a fazerem sexo no mesmo ambiente que os filhos, mesmo quando estão (ou parecem estar) dormindo, argumentando que pode gerar consequências semelhantes às de um abuso sexual.

Desde então, a especialista já publicou mais de 1800 posts —fora lives e stories— com títulos como "aluno se masturbando na escola", "a criança inventa o abuso?", "beijar na boca da criança pode?", "criança acessando pornografia", ou "‘namoro’ entre crianças: o que os pais não devem fazer".

Ela também já organizou cursos online para aconselhar pais e profissionais a prevenir abusos e a falar sobre sexualidade e limites corporais com as crianças.

Mulher aparece sentada frente a uma mesa de escritório com um laptop aberto em um local de trabalho. Ela usa uma blusa de cor branca e sorri para a foto
A psicóloga pernambucana Leiliane Rocha, que se especializou em educação sexual, ao perceber que suas pacientes tinham problemas sexuais derivados de abusos na infância - Divulgação

Em seus vídeos, Leiliane se comunica de forma assertiva, didática e até bem-humorada —uma abordagem que, em sua opinião, ajudou seu canal a fazer sucesso.

"Eu falo de um tema pesado, difícil, porém com leveza. Entrego coisas práticas para que a pessoa veja um vídeo meu, aplique com o filho e tenha resultado", afirma. "Se eu falar a realidade do abuso sexual e não trouxer uma forma de combatê-la, vou estar só assustando todo mundo."

A influenciadora também possui uma peculiaridade que a ajuda a chegar a um público que pode ter receio desse assunto por razões religiosas. Adventista desde criança, ela fala de Deus e de sua fé em alguns dos conteúdos que produz, e muitos alunos que procuram seus cursos são cristãos.

Algumas orientações, inclusive, são especificamente dirigidas ao público evangélico. É o caso de uma postagem sobre a "vara da disciplina" e a orientação de alguns pastores de que bater é bíblico, o que ela condena: "Bater em criança não é ordem divina", escreveu.

Leiliane não vê contradição entre religião e educação sexual, tanto que ela utiliza trechos da Bíblia em seus cursos e alerta fiéis a ficarem atentos a possíveis abusos em cultos e outros rituais. "Pedófilos adoram capa de cordeiro", diz. "A gente não pode baixar a guarda porque está na igreja."

O que te motivou a postar conteúdo sobre sexualidade infantil e prevenção de abusos? Fiz pós-graduação em sexualidade e, quando comecei a atender mulheres, percebi que muitas delas não tinham orgasmo e que a gênese desses problemas era a falta de educação sexual. Eu ouvia o tempo todo "Eu fui abusada" e percebi que tudo começa na infância.

Decidi montar um curso presencial de educação sexual infantil para pais e, para minha surpresa, as vagas esgotaram rapidamente. Na época eu nem sabia o que era Instagram, mas uma amiga me incentivou a publicar conteúdo nas redes sociais e resolvi tentar. Entre meus seguidores, mais de 90% são mulheres porque a maioria maciça foi abusada na infância de alguma forma. Outras descobriram que sofreram abuso depois de me seguirem.

Como você ultrapassou 1 milhão de seguidores falando de um assunto que ainda é um tabu para tanta gente? Se eu falar a realidade do abuso sexual e não trouxer uma forma de combatê-la, eu vou estar só assustando todo mundo, portanto, eu não digo só o que é, mas como fazer para evitar.

Entrego coisas práticas para que a pessoa veja um vídeo meu, aplique com o filho e tenha resultado —tanto que é comum pais ou professores comentarem que descobriram que o filho ou um aluno foram abusados por causa de uma dinâmica que eu sugeri.

Eu faço um post de estatística por mês, mas o resto é dinâmica, métodos, técnicas. Se eu mostro o problema em um post, eu faço 29 posts com soluções. Eu acho que tudo é Deus quem faz, mas humanamente falando, o que fez meu perfil crescer é que eu falo de um tema pesado, difícil, porém com leveza, com praticidade, com humor.

A imagem é formada por 6 quadros, cada um contendo fotos da influenciadora Leiliane Rocha com alguns títulos que ilustram os vídeos os postagens feitas por ela na internet
A psicóloga Leiliane Rocha se tornou influencer ao criar perfil nas redes sociais com postagens com dicas sobre prevenção de abuso sexual - Divulgação

É possível falar de abuso sexual infantil com leveza e humor? Cientificamente, qual é a principal ferramenta da aprendizagem infantil? A ludicidade. O humor é uma das principais energias psíquicas, temos que trazer o lúdico para promover o aprendizado da criança e até do adulto.

Quais são as dúvidas mais comuns de seus seguidores? Eles gostam muito de aprender como falar sobre sexualidade com as crianças, como responder perguntas cabeludas, lidar com masturbação na infância, com jogos sexuais entre crianças. Eles também gostam de saber como identificar se uma criança, se um bebê está sendo abusado.

Os pais ficam surpresos de ver como os abusadores agem de maneiras inesperadas, impensáveis, dizem: "não é possível que isso aconteça". Mas aí é só ler os comentários porque sempre tem pessoas dizendo que passaram por aquilo naquele tipo de situação.

É comum grupos religiosos serem contrários à educação sexual nas escolas. Você vê contradição entre religião e ensino de sexualidade? Muito pelo contrário. Inclusive, quando faço palestras e cursos em escolas confessionais cristãs, eu uso muito a Bíblia. Por exemplo, eu falo que Deus fez o nosso corpo importante, especial, com tantas partes que nos protegem… A pele protege os órgãos, a sobrancelha protege nossos olhos —e aí eu chego na questão da proteção das partes íntimas e da prevenção do abuso.

Por que há tanta resistência das famílias à inclusão do assunto no currículo? As pessoas não entenderam o que é a educação sexual. Quando elas entendem, as resistências caem. Eu nunca enfrentei resistência, seja em escola pública, privada, confessional cristã, não cristã, porque eu faço uma preparação, eu chamo as famílias para apresentar o projeto de educação sexual, emocional e de prevenção abuso que eu vou fazer ali.

Geralmente o medo desses pais é achar que criança vai ficar sexualizada, aprender coisas que não deveria, porque eles pensam que a educação sexual é só sobre sexo. Eu acho legítima essa preocupação, as pessoas não aderem ao que não conhecem. O problema é que muitas escolas não têm uma metodologia, não preparam os professores para isso, porque nosso problema é estrutural.

Minha grande luta é que as faculdades incluam uma disciplina de formação nesta temática não só para professores, mas para médicos, juízes, qualquer profissional que vá lidar com famílias e crianças.

Por que você acha que a escola precisa tratar desse assunto? A educação sexual na escola vai acontecer de qualquer maneira, só que nem sempre com uma metodologia ou de maneira adequada. Todo dia os professores entram em contato com essa demanda: tem muitos casos de crianças se masturbando na escola, criança falando palavrões pesados, criança que vem comentar sobre pornografia que assistiu em casa, adolescentes que estão transando com 12, 13 anos. O que eu falo para os pais é: não é melhor que exista um preparo para isso?

Como você aborda os abusos sexuais praticados por líderes religiosos? Os pedófilos adoram uma capa de cordeiro, então a religião é o cenário perfeito para eles. Eu sempre alerto que a igreja não é um clube de anjinhos; a igreja é um hospital, só tem doente, pecador, gente que vai atrás do médico dos médicos, que é Jesus. Não é que a igreja seja um lugar perigoso —eu vou semanalmente e amo—, mas a gente não pode baixar a guarda porque está na igreja.

Já atendi muitos casos de crianças que foram abusadas em banheiros de igrejas, nos ensaios de coral, no acampamento, quando acaba o culto e os pais ficam conversando lá fora enquanto o filho brinca nas salas. O abuso é muito rápido. Então eu conclamo as igrejas a aderirem a uma cultura protetiva, porque não existe outra instituição, no Brasil, que tenha mais influência sobre a família. Os pais acreditam muito nos religiosos, então a igreja tem a responsabilidade social de promover essa conscientização.

Como não ficar paranoico? Quando não têm contato nenhum com esse assunto, as pessoas não conseguem ver abuso em nada. Quando passam a ter contato, elas começam a ver abuso em tudo. Isso é super normal para quem está começando a se deparar com assunto, essa sensação de que "meu filho não está seguro em lugar nenhum". Mas o que nos leva à insegurança é não saber como proteger. Quanto mais conhecimento você tem, mais autoconfiança, porque você vai ter as ferramentas protetivas.

É claro que, independentemente do conhecimento que você tenha, toda criança corre o risco de sofrer abuso. Só que quando eu conheço as situações de risco, os comportamentos de um abusador, quando eu sei como proteger o meu filho e como ensinar o meu filho a se proteger, esses riscos caem.

Corre-se o risco de superproteger as crianças na tentativa de evitar abusos? Algumas pessoas falam: agora a criança não vai viver, não pode nem respirar. Eu tenho dois filhos e eles vão para tudo quanto é lugar, mas tem situações em que não os deixo sozinhos. Na minha casa não tem concessão de noite de pijama, por exemplo. Eu gostaria muito de falar: pode ir para o acampamento, para a colônia de férias, para o aniversário sozinha. Mas a gente não tem mundo para isso. Hoje a erotização está muito forte. Tem muitos casos de jogos sexuais de crianças que vão dormir na casa dos amigos, de acesso à pornografia até tarde.

O que acha de correntes que pregam abstinência sexual, como "Eu escolhi esperar"? Considera uma forma de educação sexual? Claro que sim. Eu acho muito pertinente a gente ensinar: "Olha se você quer escolher esperar, não há problema nisso; ou: pelos nossos valores, é melhor que seja assim". Mas a família e a igreja têm que entender que não vão conseguir segurar o adolescente. Se ele quiser, ele vai fazer sexo e ponto final. Então tem que ensinar também sobre métodos anticoncepcionais, tem que dizer: "Se você for fazer, faça de maneira segura". Eu falo isso para pastores, para grandes líderes: vocês têm que sair dessa fantasia que a molecada não está fazendo sexo só porque é da igreja. Eu faço roda de conversas com adolescentes cristãos e grande parte já está fazendo.

Mas não sou do grupo que defende que não se deve indicar abstinência antes do casamento de jeito nenhum, que é um absurdo. O que dificulta a discussão da educação sexual no Brasil são os extremos. Os adultos ficam se digladiando, e as crianças e os adolescentes, desprotegidos. Todos nós precisamos assumir essa responsabilidade, e não existe assumir responsabilidade sem conhecimento.

A causa 'Da Repressão à Prevenção da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes' tem o apoio do Instituto Liberta, parceiro da plataforma Social+.

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