Fome histórica convive com energia do futuro no semiárido do Piauí

Região historicamente associada ao flagelo convive com projetos de energia limpa, mas concentra o maior número de pessoas em insegurança alimentar grave no país

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Mulher carrega criança e lata na cabeça em paisagem seca do Nordeste

Em Betânia do Piaui (PI), Maria da Conceição Santos caminha com seus filhos carregando um balde na cabeça para buscar água em açude, desde que a falta de chuva praticamente esvaziou a cisterna ao lado de casa Lalo de Almeida/Folhapress

Betânia do Piauí (PI)

A Serra do Inácio, no pequeno município de Betânia do Piauí (PI), é hoje uma paisagem de contrastes.

Enquanto as imensas torres de energia eólica fincadas nessas terras secas do sertão do Piauí apontam para um Brasil do futuro, casebres de taipa, sem água encanada, onde sobra gente e falta comida, remontam a um Brasil do passado que insiste em se fazer presente.

A vida nessas moradias, aos pés dos gigantes tecnológicos de energia limpa, remete às descrições feitas nos anos 1940 pelo médico Josué de Castro no livro "Geografia da Fome" (Todavia), estudo pioneiro sobre insegurança alimentar no Brasil.

Castro trata da fome e da miséria na região do semiárido brasileiro, não como consequência da seca que empurrava retirantes para outras partes do país, mas de um problema político: a falta de projetos de desenvolvimento local.

"Sem reservas alimentares e sem poder aquisitivo para adquirir alimentos nas épocas de carestia, o sertanejo não tem defesa e cai irremediavelmente nas garras da fome", constatou no livro.

Mais de 70 anos depois, é isso o que ainda acontece na casa de teto baixo, à sombra das hélices dos aerogeradores, em que Maria das Graças Souza Silva, 31, vive com o companheiro e seus seis filhos, a mais nova com apenas 4 meses, o mais velho com 10 anos de idade.

Luan de Souza Silva, 7, um dos seis filhos de Maria das Graças, carrega um balde com água em frente a sua casa, entre torres de energia eólica, na região da Serra do Inácio, zona rural de Betânia do Piauí
Luan de Souza Silva, 7, um dos seis filhos de Maria das Graças, carrega um balde com água em frente a sua casa, entre torres de energia eólica, na região da Serra do Inácio, zona rural de Betânia do Piauí - Lalo de Almeida/Folhapress

"Eu me sinto amargurada por dentro porque aqui não tem serviço para a pessoa ganhar dinheiro para dar de comer aos filhos. Nem diária a gente acha", lamenta ela, que sobrevive com o Bolsa Família.

"Quando eu tiro o benefício faço a feirinha dos meninos, para nós se alimentar. Quando falta, tem vezes que eu não consigo arrumar [nada de comer], e os meninos ficam chorando. Fico sentida, mas não tem o que dar a eles", conta ela, com olhos cheios d’água.

No Nordeste, que tem 63% de seu território formado pelo semiárido, 21% das pessoas convivem com a insegurança alimentar grave. Isso quer dizer que pouco mais de 12 milhões de nordestinos passam fome, o maior contingente do país, segundo o Inquérito de Segurança Alimentar elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan).

No Piauí, de Betânia —município de 6.000 habitantes e com o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado—, 1 a cada 3 pessoas (34,3%) passa fome.

Esse Nordeste é destino privilegiado dos grandes projetos de energia eólica do país, cujos impactos vêm sendo percebidos aos poucos por moradores e estudiosos.

Famílias de agricultores que tiveram torres instaladas em seus terrenos recebem indenizações das empresas, em contratos que podem durar mais de 50 anos. Mas parecem tímidos os benefícios para as comunidades mais vulneráveis no entorno dos parques eólicos.

"Projetos de energia eólica e solar são complexos e têm impacto", diz Rejane Silva, coordenadora da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) no Piauí. "O resultado positivo para as famílias a gente ainda não conseguiu identificar."

As torres de vento de Betânia do Piauí fazem parte de um complexo de parques eólicos da Auren Energia, ligada ao grupo Votorantim, que recebeu, em 2021, R$ 1,6 bilhão do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Questionado sobre a contrapartida para a comunidade, o banco citou a geração de empregos e de impostos, as compensações ambientais e a construção de uma área de lazer e de uma escola.

Procurada, a Auren Energia não quis se pronunciar sobre projetos voltados para quem vive aos pés de suas torres.

FALTA DE ÁGUA

Historicamente associada ao imaginário da fome, o sertão nordestino sofreu com a falta de investimentos capazes de promover desenvolvimento e acesso à água.

"O modelo de intervenção se concentrava em programas emergenciais, que levavam água e alimento à população em períodos de grande escassez", explica Poliana Palmeira, professora de Nutrição da Universidade Federal de Campina Grande (PB) e coordenadora da Rede Penssan.

"Esse cenário só mudou de maneira relevante a partir de 2003, com a implementação da Estratégia Fome Zero, que criou um novo paradigma de política pública voltada à convivência com a seca."

Formado por um conjunto de programas de combate à miséria e de desenvolvimento da agricultura familiar, o Fome Zero deu origem ao Bolsa Família. O Nordeste concentra o maior número de beneficiários do programa: 9,59 milhões de famílias.

A melhora dos índices, que levaram o país a deixar o Mapa da Fome da ONU em 2014, no entanto, durou pouco. "A partir de 2016, assistimos ao desmonte de uma série de programas que fizeram com que o impacto da pandemia fosse mais profundo na região", aponta Palmeira. Em 2023, o governo anunciou novos esforços para retirar o país de novo do mapa da ONU.

Um dos impactos sentidos foi no acesso à água, com a desaceleração do Programa de Cisternas, do governo federal. Criado em 2003, ele atingiu seu pico em 2014, com 149,1 mil cisternas construídas. Desde então, foi reduzido drástica e sistematicamente até atingir seu pior desempenho em 2022, com apenas 3,7 mil unidades.

Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, em 2023, investimentos foram retomados e 62 mil cisternas, entregues.

Maria da Conceição Santos, 45, até tem uma cisterna no quintal, mas ela está praticamente vazia. Um de seus 9 filhos, com 7 anos, pula dentro do tanque de concreto de dois metros de profundidade para raspar o fundo com uma jarra de plástico. É muito pouco.

A mãe, um balde na cabeça, um filho na mão e outro no colo, busca água em um pequeno açude numa comunidade quilombola de Betânia do Piauí.

Levi Santos, filho de Maria da Conceição Santos, recolhe o que sobrou da água da cisterna da família com a ajuda de um pote, na comunidade quilombola do Baixão, na zona rural de Betânia do Piauí
Levi Santos, filho de Maria da Conceição Santos, recolhe o que sobrou da água da cisterna da família com a ajuda de um pote, na comunidade quilombola do Baixão, na zona rural de Betânia do Piauí - Lalo de Almeida/Folhapress

O município não tem água encanada e é abastecido por carros-pipa, cujo custo varia de R$ 100 a R$ 200, inviável para a família dela. O jeito é aguardar a água trazida pelas chuvas sazonais ou pelo Exército.

Nesta época do ano, após a seca mais intensa, é com a água barrenta do pequeno açude que Maria da Conceição cozinha o arroz e o feijão de cada dia. "No dia que tem comida, faz. No dia que não tem, não faz", resume. Quando o alimento acaba, ela engana o choro dos filhos "com um chazinho".

"Chego a ficar dois dias sem colocar uma panela de comida no fogo", diz, apontando para o fogão à lenha da cozinha sem geladeira. Quando "as tripas ficam tudo tremendo", ela diz que o jeito é esperar. "Passar fome é ficar parada. Não dá para fazer nada."

Para Sandra Chaves, nutricionista da Universidade Federal da Bahia, a transferência de renda "não é suficiente, mas salva vidas". "Nós sobrevivemos por causa do arroz e feijão, que são a identidade gastronômica nacional. Mas o preço desses alimentos subiu muito."

A ONG Amigos do Bem, que atua há 30 anos em vários estados do semiárido nordestino, lida com uma seca especialmente severa neste ano, "a pior nas últimas quatro décadas", o que torna as operações mais complexas.

"A fome é uma batalha diária", afirma Alcione Albanesi, fundadora da ONG que distribui 30 mil cestas básicas por mês na região, associada a projetos de educação e de inclusão social e produtiva. "Vamos de povoado em povoado. Não é só dar o alimento. Nossa metodologia vem com um modelo de transformação."

QUINTAIS PRODUTIVOS

A algumas centenas de metros da casa de Maria da Conceição, cercada de terra batida e lixo plástico, está um dos quintais produtivos que integram o projeto da ONG Novo Sertão.

Nele, a quilombola Ana Leide Carvalho da Silva, 44, aprendeu a cultivar a terra com economia máxima de água e a plantar beterraba, couve, pimentão, cenoura, alface, coentro, tomate.

"Passei a vida comendo arroz e feijão. Éramos 14 filhos e nem sempre tinha para todo mundo", lembra ela, que se casou com 15 anos. "Hoje tenho condições de almoçar, jantar, merendar… Depois dos quintais produtivos, nossa alimentação ficou muito saudável. Tenho alimentos no meu quintal. E o que sobra, eu vendo."

A agricultora Ana Leide Carvalho da Silva colhe legumes na horta de sua casa, no quilombo do Baixão, na zona rural de Betânia do Piauí. Ele é parte do projeto Quintais Produtivos, desenvolvido pela ONG Novo Sertão, que estimula a producao de hortalicas por mulheres dessa comunidade do semiárido
A agricultora Ana Leide Carvalho da Silva colhe legumes na horta de sua casa, no quilombo do Baixão, na zona rural de Betânia do Piauí. Ele é parte do projeto Quintais Produtivos, desenvolvido pela ONG Novo Sertão, que estimula a producao de hortalicas por mulheres dessa comunidade do semiárido - Lalo de Almeida/Folhapress

Semanalmente, a ONG passa nos produtores para recolher a produção excedente e monta, no centro de Betânia, uma feira orgânica. Parte da produção é destinada à merenda das escolas da região por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Quando chegou de São Paulo em Betânia do Piauí, dez anos atrás, o empreendedor social José Carlos Brito, 31, ficou assustado. As pessoas lhe pediam água para beber. E a urgência desse chamado fez ele iniciar um trabalho de doação de galões, que lhe renderam o apelido de Zé da Água.

"Logo eu percebi que era só a ponta do iceberg. As pessoas comiam muito mal, ou ficavam sem comer , e não tinham acesso a emprego. Ficar dando cesta básica era algo sem fim", afirma.

"Como o sertanejo tem tradição de produzir na sua terra, mesmo que de maneira sazonal e rudimentar, pensei nos quintais agroecológicos", conta ele, cuja equipe coordena e auxilia cerca de 40 famílias.

Brito combinou técnicas de reúso de água, compostagem e plantio em consórcio para os beneficiários do projeto produzirem o ano inteiro, e agora planeja expandir os quintais e criar uma área de produção comercial.

Para ele, o principal entrave não é escassez de água, mas a descrença. "Existe uma questão cultural em comunidades muito vulneráveis que é a crença de que não são capazes e de que suas terras não produzem", explica.

"A gente não chega num dia e, no outro, já tem uma horta funcionando. Precisa de tempo, cuidado e formação, e essa parte da mentalidade tem que ser trabalhada de maneira muito forte."

Como escreveu Josué de Castro, "a luta contra a fome no Nordeste não deve ser encarada em termos simplistas de luta contra a seca (...) mas de luta contra o subdesenvolvimento em todo o seu complexo regional".

A causa 'Fome de quê? Soluções que inspiram' conta com o apoio da VR e da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais

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