![](images/shim.gif) |
O
boné vermelho dos sem-terra não me cai muito bem, como dá para imaginar
a partir da foto que publicam acompanhando esta coluna.
Aliás, a foto tampouco me cai bem. Mas não é preciso ter um boné vermelho
na cabeça para ficar espantado com as declarações do porta-voz da
Presidência da República, a respeito da morte de um sem-terra em Curitiba.
Antônio Tavares Pereira foi baleado. Como a bala era de chumbo, e
tinham pontaria, ele morreu. Isso é tudo o que sei, pela leitura dos
jornais desta quinta-feira. Quem matou, não fica muito esclarecido.
Mas as declarações do porta-voz de FHC são esclarecedoras. A morte
é lamentável, disse Georges Lamazière, e quanto a isso não há o que
discordar. Mas, acrescenta o porta-voz, a morte "deve servir
de alerta para aqueles que optaram pela provocação e pelo desrespeito
à democracia e à cidadania’’.
Bem, eu fiquei muito alerta, de fato. Pois, se matar um manifestante
é um aviso _um pequeno aviso, um lembrete, uma admoestação ligeira,
um dedinho indicador no rosto dos sem-terra_, quais os próximos passos
do aparato repressivo? O MST está avisado. Que pare já com a brincadeira;
caso contrário, aí sim vai ver o que é chumbo grosso.
O espantoso desse "alerta’’ é que admite muito mais do que seria
diplomático, ou democrático, ou racional admitir. O secretário da
Segurança Pública do Paraná, por exemplo, repeliu com veemência qualquer
responsabilidade da PM do Estado, que só usa balas de borracha em
eventos dessa natureza. Balas de borracha talvez sejam artefatos muito
brandos para defender "a democracia e a cidadania". Mas, enfim, é
o que ele diz.
Há mais: o secretário paranaense, Tavares de Miranda _a quem, pelo
nome, concedo ao menos a presunção de ser familiarizado com assuntos
sociais_, afirma que o sem-terra foi baleado antes do confronto com
a polícia. Entrou no hospital às 9h09 da manhã, e o conflito ''oficial''
iniciou-se mais tarde, às 10h45.
Há notícias, entretanto, de confrontos anteriores ao das 10h45. As
coisas estão nesse pé. Nada obrigava FHC ou seu porta-voz falarem
em "alerta'', em defesa da democracia ou em direitos humanos.
Minto _quem falou direitos humanos foi o ministro Raul Jungmann, para
quem invadir um prédio público, fazendo funcionários de reféns, é
equivalente ao crime de tortura.
Claro que as invasões do MST são ilegais. Mas agora a repressão se
torna defesa da democracia, os sem-terra são comparados a torturadores
e um assassinato é só um aviso.
A que corresponde essa radicalização absurda do discurso governamental?
A duas coisas. A primeira é o complexo de machismo que de vez em quando
acomete o Palácio do Planalto. Farto de ser considerado conciliador,
FHC precisa mostrar-se ''firme'', de preferência quando não estão
em jogo os interesses de algum investidor internacional ou banqueiro
temerário.
A segunda é que o governo carece de qualquer estratégia de persuasão
política. Não tem nada a dizer. Suas mensagens são apenas de preservação
do status quo. A saber: tudo é em defesa do real, e nada pode ser
feito para não comprometer os avanços do real. E tudo _aqui a fala
do governo rememora os tempos da resistência ao regime militar_ é
em defesa da ordem democrática. Não se aponta _nem na famigerada festa
dos 500 anos_ para uma nova utopia, para um projeto, para um futuro.
Como não há futuro a defender, perde-se a legitimidade de qualquer
argumento contra os sem-terra, os índios ou o monte de chatos que
insistem frequentemente em reclamar.
Não digo que o MST parasse com suas provocações se o governo oferecesse
um horizonte mais claro de justiça social. Mas quando o governo não
tem esse horizonte, é óbvio que seu único discurso é o da repressão.
Já houve quem tenha falado, a propósito da pancadaria em Porto Seguro,
que os protestos estavam tumultuando ''o processo democrático''. Não
ouvia falar em "processo democrático’’ desde os tempos do general
Ernesto Geisel. Mas o vocabulário governista vai reeditando pérolas
desse tipo.
O chato, com esses vexames, não é que se evidencie o autoritarismo
de Brasília. É que os americanos podem não gostar. Essas notícias
de índio levando cacetada, de sem-terra assassinado, de muita concentração
de renda etc., correm pelo mundo. A secretária de Estado Madeline
Albright já andou dando puxões de orelha no Brasil. Ela que se cuide.
Talvez a morte de Antonio Tavares Pereira também lhe sirva de alerta.
Leia colunas anteriores
28/04/2000 -
Banda podre
21/04/2000 - Pacto Fisiológico
|