Xampu, muçarela e bufê: grafia correta de palavras é definida pelo consenso, ensina professor

Autor de 40 livros, Deonísio da Silva fala sobre estrangeirismo, neologismo e empréstimo na língua portuguesa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

A língua portuguesa tem influência de diversas línguas, das europeias às indígenas, das africanas às asiáticas, incluindo a língua inglesa, especialmente na hora de se falar de ciência e tecnologia. Mas parece que não são só essas. "Tem o reino da imitação", completa o professor e escritor Deonísio da Silva, autor de "De Onde Vêm as Palavras: Origens e Curiosidades do Português" e de outros 40 livros.

"O brasileiro ainda habita a terra dos papagaios. Adora imitar e tem um estranho complexo, revestido de insólita modéstia: se acha pior do que os outros", brinca, dizendo que, em seus 74 anos de vida, já reparou que o que é estrangeiro costuma ser valorizado no Brasil, inclusive no idioma.

Verbete em dicionário da língua portuguesa - Fabio Braga/Folhapress

O português já teve a tendência de pegar mais palavras emprestadas do francês e, desde o império britânico, explica Deonísio, o inglês vem se impondo. "Mas isso pode mudar. De repente talvez seja o mandarim. Aliás, 'de repente' não acontece nada na língua. São processos demorados. As novas palavras demoram a consolidar-se em outra língua."

Hoje em dia escrevemos "xampu", "muçarela", "champanhe", "blecaute", "chantili", "piquenique", "sutiã", "uísque", "bufê" e "náilon", por exemplo —sim, essas são as grafias corretas delas, palavras chamadas de "aportuguesadas".

"A grafia correta é aquela sobre a qual há um consenso baseado em princípios", ensina Deonísio. "O 'padre' já foi 'patre', declinação do latim pater, mas consolidou-se com troca do 't' pelo 'd'. 'Paróquia' designava no grego um departamento civil. No latim ainda designou, mas consolidou-se no português como 'divisão eclesiástica'. Sempre dependerá de uma mescla do uso com as leis gerais da língua."

Na teoria da língua portuguesa, existem três conceitos bem parecidos para falar de palavras assim. "'Fake news' é um estrangeirismo para 'notícia falsa'. Bastava isso. 'Deletar', 'clicar' e 'lincar' são neologismos, palavras adaptadas ao português. E o alemão 'Gestalt' [escola de psicologia] é empréstimo, pois não é forma nem formato, embora lembre os dois", diz Deonísio.

Ele traz mais algumas curiosidades sobre nosso vocabulário do dia a dia, e que ele chama de "complexas sutilezas". "Nós dizemos 'sushi', em japonês, para o bolinho de arroz, e 'sushiman' para quem o faz, japonês com inglês. Mas ainda não grafamos 'suxi'", aponta.

"Temos certeza de onde veio a palavra 'bacalhau'? Não. Mas sabemos que 'carro' veio do celta 'carr', para o latim 'carrus', que predominou sobre 'automóvel', do latim 'auto mobilis' [que se move por si], mas antes passou pelo francês 'automobile'. Mas quem inventou o automóvel foram os alemães ou os franceses? Eis a controvérsia."

"Às vezes, em vez de uso, há o abuso, por desatenção, descuido ou mesmo desrespeito à língua-mãe", considera o professor. "'Delivery', por exemplo, não é necessário. É 'entrega'. Às vezes já temos as palavras. Foram e são desnecessários 'shopping centre' (centro comercial), 'marketing' (propaganda é muito melhor), 'stand by' (espera), 'job' (tarefa), r'ush' (engarrafamento)."

Sobre neologismos, o professor dá o exemplo do verbo "entubar", que, durante a pandemia de Covid-19, acabou sendo escrito como "intubar" diversas vezes, algo que Deonísio chama de "simplificação forçada".

"'Tuitar' talvez se consolide e 'tuíte' também. Tal médico é 'gastro'. Fulana é dentista, mas para capacitar-se fez curso de 'odonto', redução de 'odontologia'. Talvez a enxurrada de novas palavras ou de palavras alteradas seja mais do que isso. Uma enxurrada. Depois, cessa a inundação e as águas voltam ao leito do grande rio que é a língua portuguesa", compara.

Para Deonísio, o contato frequente entre gerações, facilitado pela tecnologia, deve colaborar bastante para que o português ganhe outros ares. Ele usa como exemplo sua relação com os dois netos, de 6 e 3 anos.

"Eles dizem 'Youtube' e áudio, mas não dizem 'zap' nem 'WhatsApp'. Quando recebem um WhastApp do vovô dizem que foi um áudio. 'Roda de novo o áudio do vovô, mamãe!', pedem. O velho latim está ali na raiz de 'áudio', talvez porque já lhes seja familiar até a palavra composta 'audiovisual'", teoriza.

"Nas gerações anteriores, foi mais raro o convívio. Agora está cada vez mais frequente e mais intenso. Ao menos na fala. Netos e avós, filhos e pais, podem se falar todos os dias, ainda que não morem perto. Esta nova realidade vai alterar o uso da língua portuguesa."

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.