Reprovados mostram que repetir de ano pode parecer o fim do mundo, mas não é

Adultos que 'bombaram' quando crianças contam que isso afetou pouco sua vida; educadora sugere que família dialogue

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São Paulo

Para a maioria das pessoas, o calendário mudou na noite de 31 de dezembro e um novo ano começou. Mas, para algumas crianças e jovens, 2024 vai ser bem parecido com 2023, ao menos nas coisas que acontecerão na escola –os repetentes, aqueles que não conseguiram alcançar as notas necessárias para a aprovação, agora precisam cursar de novo a mesma série. E isso pode ser chato pra caramba.

Tem quem sinta essa repetência como um grande fracasso, e fique com baixa autoestima. Tem famílias que ficam muito bravas com o estudante. Mas dá para olhar as coisas por outro ângulo. "Às vezes, a partir de uma reprovação, vem uma oportunidade nova de começar de novo, de refazer caminhos e repensar trajetórias", diz a educadora e professora da pós-graduação da Faculdade de Educação da USP Silvia Colello.

Duda Izique, que se formou em cinema depois de repetir de ano no colégio, e hoje trabalha com o que ama - Zanone Fraissat/Folhapress

Silvia afirma que é claro que repetir não é o ideal, porque traz consequências negativas para todos os envolvidos —há gastos financeiros, é preciso estar numa turma com alunos mais novos etc. Mas, para ela, pode haver também pontos positivos. Há repetentes, por exemplo, que trocam de colégio, e às vezes o novo lugar se revela mais legal que o anterior.

Duda Izique é adulto e tem um cargo com nome difícil na The Walt Disney Company: ele é "manager, editorial & post production". Mas, um dia, quando era criança, Duda repetiu de ano e achou que aquele era o fim da sua vida.

"Até os meus 13 eu praticamente só tirava nota 10. Cheguei a receber um troféu da mão do diretor por ser um 'aluno modelo'. Mas o colégio era super rígido e eu queria estudar de manhã e não ter que usar uniforme. Então, na sétima série consegui mudar para um colégio que era o oposto. Podia fazer o que quisesse, e foi aí que as coisas começaram a dar errado", lembra.

Se você está passando por isso, tenha certeza de que não é o fim do mundo. É uma chance de fazer diferente. Na vida adulta, nem sempre a gente tem essa oportunidade de tentar de novo

Duda Izique

funcionário da The Walt Disney Company

Ele conta que ia bem em todas as disciplinas, mas que na nova escola passou a ir mal em tudo. "Principalmente em matemática e no novo idioma que lá tinha: francês", diz. "Comecei a ter aulas particulares de francês, mas não foi suficiente. Conforme os boletins anunciavam a tragédia, também tive aulas particulares de matemática, gramática e até de história."

O tema "repetir de ano" foi ficando cada vez mais frequente em casa, o medo crescia, e quando o caos se aproximava, os pais de Duda surpreenderam a todos. "Eles acabaram por transformar a repetência em algo didático. Foi, no fundo, um bom aprendizado sobre causa e consequência, e um curso intensivo e prático sobre responsabilidade", afirma.

Duda cursou faculdade de cinema e hoje trabalha com o que ama. "Se você está passando por isso, tenha certeza de que não é o fim do mundo. É uma chance de fazer diferente. Na vida adulta, nem sempre a gente tem essa oportunidade de tentar de novo. E, se ser bem-sucedido for sinônimo de estar realizado, posso dizer que sou bem-sucedido, sim", afirma.

Guilherme Calzavara é ator e músico. Um dia, ele também foi repetente. "Na época, aconteceram vários fatos. Meus pais se separaram, meu pai mudou de casa. Eu até achava legal ter duas casas e não sei se isso afetou meu comportamento, mas, como minha mãe dizia, chega sempre uma hora que todo mundo fica meio vagabundo para estudar", brinca.

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SÃO PAULO, SP, 09.06.2019 - Guilherme Calzavara, que se tornou ator e músico depois de repetir de ano na infância - Gabriel Cabral/Folhapress

Quando as coisas começaram a ficar ruins para o lado dele, Gui pediu ajuda aos amigos que iam bem na escola. "Mas eu não tinha nem tenho nenhum apreço por química, física e matemática. Eu queria ser cientista por causa do filme 'De Volta para o Futuro', mas desisti imediatamente quando soube que precisava saber muito bem de números", conta. Por conta da repetência, ele trocou de escola.

"No primeiro dia me cercaram dizendo que eu tinha cara de riquinho. Mas fui ficando amigo de todo mundo e hoje são pessoas que eu amo."

Vitinho Imperador é compositor e tem quase 2 milhões de ouvintes mensais no Spotify. Ele repetiu o oitavo ano uma vez, e o nono, duas vezes. "Eu não tava nem aí. Não vou mentir. Eu era um menino hiperativo, não gostava de estudar, não gostava de ir pro colégio. Odiava acordar cedo. Eu me comportava quando eu tava dormindo de cabeça baixa, porque, se eu tava acordado, eu conversava ou cantava muito", lembra.

Ele conta que não sentiu vergonha das repetências, mas que ficou com medo do futuro. "Minha mãe me deu uma 'lapada', uma bronca muito grande. Eles ficaram meio tristes, mas minha família me apoiou para que eu pudesse me encontrar", diz.

A repetência por si só não é nada. Temos que ver o que faltou no caminho, o que foi positivo, ter um diálogo. A repetência com consciência faz toda a diferença

Silvia Colello

educadora

A educadora Silvia fala que nem sempre os bons alunos viram bons profissionais no futuro, assim como os maus alunos também não terão necessariamente um destino terrível traçado. E que é até "perigoso" associar essas duas coisas, porque ninguém deve ficar "marcado" por um acontecimento como este.

Ela acha que as crianças e jovens repetem de ano por duas situações, no geral: porque de fato não conseguiram aprender, ou porque criaram um jeito negativo de olhar para o aprendizado e a escola. Seja qual for o motivo, Silvia recomenda que as famílias tentem entender juntas as causas da reprovação e tomem providências também em conjunto.

"A repetência por si só não é nada. Temos que ver o que faltou no caminho, o que foi positivo, ter um diálogo. A repetência com consciência faz toda a diferença."

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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