No palco, Beth Goulart é Clarice Lispector, e suas personagens
Clarice Lispector (1920-1977) dizia que "escrever não é inventar, mas correr o risco de encontrar a realidade". Limitando-se a trocar o primeiro verbo por "atuar", Beth Goulart, 48, segue o conselho de forma exemplar no monólogo "Simplesmente Eu - Clarice Lispector", em cartaz no Rio.
Em uma hora, a atriz apresenta uma tradução cênica para o que, aos olhos da escritora, é o real: aqueles instantes de suspensão em que, na surdina e sob um disfarce prosaico (animal, planta ou um cego mascando chiclete), abrindo fendas na modorra da rotina, a vida irrompe _monumental, desconhecida, temerária e onírica.
Entre o fascínio e a repulsa suscitados pelas epifanias, no limiar do estado de graça e do horror trazidos pela descoberta do mundo, quatro personagens sacadas de contos, crônicas e romances da autora se equilibram, em cena, com a figura da escritora ela mesma.
As falas desta são pinçadas de entrevistas, depoimentos e cartas da Clarice real, que dão pistas sobre seu sentimento de culpa pela morte da mãe, a relação com Deus, a personalidade reservada e a devoção às letras.
Lenise Pinheiro/Folha Imagem/Reprodução | ||
A atriz Beth Goulart, em "Simplesmente Eu - Clarice Lispector", e a escritora, em foto de meados da década 1960 |
"Escolhi personagens que, de certa maneira, têm relação com algumas fases da vida da Clarice", diz Beth, também autora e diretora do espetáculo, que assim justifica as escalações:"A Joana [de 'Perto do Coração Selvagem'] representa o impulso criativo, até um pouco adolescente. A Ana [do conto 'Amor'], dona-de-casa dedicada aos filhos e ao marido, lembra o momento 'família' dela, casada com o [diplomata] Maury Gurgel Valente e mãe de Pedro e Paulo. A Lóri [de 'Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres'] incorpora a importância do amor, do encontro amoroso. E a mulher anônima [da crônica 'Perdoando Deus'] ecoa um pouco o lado racional e bem humorado da Clarice, sua sagacidade."
Segundo a atriz, o ir-e-vir da montagem entre criadora e criaturas busca explicitar a forma como "a pessoalidade de Clarice" contamina sua obra:"O interessante é que sua escrita traz a voz do personagem, a dela como autora e ainda uma terceira, de interpretação, reflexão crítica sobre o que está sendo dito. Desse jeito, consegue tratar bem do mistério feminino, dessa qualidade de sermos quatro por mês, de sermos muitas numa só".
A criação do espetáculo consumiu dois anos de pesquisa e mais seis meses de preparação de corpo e voz.
Conhecida pelo rigor que emprega na composição gestual de personagens, Beth encarna aqui uma Clarice de erres salientes (cortesia da língua presa, não da origem ucraniana, como acreditam alguns), olhares fugidios e que roça polegar e anelar enquanto fuma.
A precisão não a impede de transcender a mimese, ir além do virtuosismo da "incorporação mediúnica" pura e simples. No palco, Beth é Clarice, suas personagens e um pouco ela própria. A escritora afirmava se sentir pobre por "só ter corpo e alma" e precisar "de muito mais". Corpo e alma bastam para fazer a fortuna de Beth neste "Simplesmente Eu", que deve chegar a São Paulo em 2010.
SIMPLESMENTE EU
Quando: qua. a dom., às 19h
Onde: RJ (r. Primeiro de Março, 66; tel. 0/ xx/21/3113-3651); até 4/10 (12 anos)
Quanto: R$ 5 a R$ 10
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