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Mostra exibe filme que rendeu prêmio em Berlim e mandado de prisão a diretor

'Não Há Mal Algum', do iraniano Mohammad Rasoulof, fala sobre totalitarismo e pena de morte

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São Paulo

Em fevereiro, Jeremy Irons subiu ao palco do Festival de Berlim para revelar qual filme havia sido escolhido pelo júri que ele presidiu para levar o prêmio máximo do evento, o Urso de Ouro. Quando ele anunciou o nome de Mohammad Rasoulof, uma moça levantou da plateia e caminhou em direção ao ator para receber o troféu.

Impedido de sair do Irã por questões políticas, o cineasta não pôde participar da festa, e foi sua filha, a atriz Baran Rasoulof, quem posou com a simpática estatueta em formato de urso na Berlinale.

“Não Há Mal Algum” é o longa que está no centro do mais novo imbróglio entre o diretor iraniano e o governo de seu país. Ele estreia agora na 44ª Mostra de Cinema de São Paulo, como um dos mais aguardados longas da seleção deste ano de pandemia.

Também escrito por Rasoulof, o filme, feito em parceria entre Irã, Alemanha e República Tcheca, é um compilado de quatro histórias que versam sobre moral, liberdade e pena de morte. A trama é impregnada de um discurso crítico ao conservadorismo e ao autoritarismo que se apossaram do país do diretor.

“Eu estou numa situação complicada. Eu tenho duas sentenças à prisão separadas, cada uma de um ano, por causa de meus últimos filmes. Além delas, ‘Não Há Mal Algum’ gerou outro caso contra mim, atualmente na Justiça. Chegaram a me sentenciar à prisão no começo do ano, mas a Covid-19 fez com que adiassem a pena”, conta Rasoulof.

O cineasta é autor de outras obras críticas às normas que regem o Irã. Uma delas é “A Man of Integrity”, sobre injustiça e corrupção, que também causou problemas ao diretor e resultou na proibição de que ele deixasse o país por dois anos. Agora, as autoridades ali acusam “Não Há Mal Algum” de ser uma peça de “propaganda contra o sistema”.

Mas o filme quer ecoar em países além do Irã. Segundo Rasoulof, ele é um estudo sobre o totalitarismo em geral, tanto que uma de suas inspirações não tem relação com o regime iraniano —e morreu antes mesmo da Revolução Islâmica de 1979.

“O filme é um resumo das visões da filósofa alemã Hannah Arendt, que enfatizam a necessidade de tomar responsabilidade contra o que é mau. Em seu trabalho, ela descreve como um sistema totalitário depende de mentiras e hipocrisia para sobreviver.”

Pelo que diz, Rasoulof parecia não ter dúvida de que sua nova obra logo incomodaria as autoridades. “Nesse tipo de sistema, qualquer reflexão sobre a realidade é considerada um ato político contra o poder governante”, afirma.

Foi por causa da linha de pensamento da filósofa que Rasoulof jogou todo o destaque das quatro tramas que compõem “Não Há Mal Algum” em pessoas comuns. Sua intenção, diz ele, era explorar como os indivíduos encaram seu papel dentro de um sistema totalitário, muito maior e mais poderoso do que eles.

“Você aceita que é uma pequena parte de uma máquina de carnificina e que não faz diferença você existir dentro dela? Ou você encontra um novo papel nisso tudo e desobedece às ordens?”, questiona.

Não há dúvida que Rasoulof escolheu a segunda alternativa. Ele foi, mais de uma vez, banido de fazer novos filmes, junto de outros cineastas celebrados, como Jafar Panahi. Mas as restrições não o impediram de seguir no ofício e acabaram dando ainda mais projeção à sua carreira.

Em Berlim, “Não Há Mal Algum” não só venceu o Urso de Ouro, como também embolsou dois outros prêmios. Gravar a obra, no entanto, foi uma verdadeira batalha.

“O motivo de esse filme ser composto de quatro curtas se deve parcialmente à minha condição. As barreiras da censura fazem com que seja quase impossível produzir esse tipo de história formalmente e a produção clandestina é muito arriscada”, conta. “Mas fazer vários curtas, com histórias alternativas e dirigidos por pessoas fictícias, que não são monitoradas pelas autoridades, me deu a chance de produzir a obra de forma segura.”

Mesmo que as histórias sejam costuradas pelo tema comum da pena de morte, Rasoulof ressalta que esse não é o destaque do filme. A relação entre as pessoas e as delas com seus governos é o que de fato está em jogo em “Não Há Mal Algum”. “Eu sou contra a pena de morte, porque ela apenas reproduz e ajuda a propagar a violência. De qualquer forma, esse não é o cerne do filme, que na verdade quer mostrar como as pessoas se relacionam com o poder”, diz.

“O cinema pode equipar histórias de entretenimento com divagações importantes sobre a vida. Não importa se elas são baseadas na imaginação ou na realidade, ou se falam sobre passado, presente ou futuro. O que importa é que ele nos faça pensar sobre o que somos e o que queremos.”

Enquanto espera as decisões da Justiça iraniana para saber se vai ou não para a prisão, Rasoulof não pretende diminuir o tom crítico. Segundo ele, a maneira como as autoridades de seu país olham para o cinema, aliás, é comparável à relação entre essa arte e a Alemanha Nazista ou a União Soviética de Stálin.

Ele chama a atual patrulha à cultura do governo iraniano de ridícula, destacando entre seus absurdos regras muito mais banais do que as que buscam silenciar os personagens de seus filmes. Entre elas, a proibição de que mulheres dancem em público.

“Essa situação não diz respeito só ao cinema, mas à arte como um todo. E ela é aceita por 80 milhões de pessoas, que a normalizaram.”

*

Outros filmes de Mohammad Rasoulof

"The Twilight"
Em sua estreia, o diretor acompanhou um homem que estava preso por roubo

"Iron Island"
A história de um grupo de pessoas que, sem terem onde morar, ocupam um navio abandonado

"Head Wind"
O documentário investiga a censura no Irã

"The White Meadows"
Mostra um homem que tem como trabalho colecionar a tristeza dos outros

"Goodbye"
A tentativa de uma jovem advogada de conseguir um visto para deixar o Irã

"Manuscritos Não Queimam"
Dois homens são contratados para matar um poeta que escreve contra o governo

"A Man of Integrity"
Drama sobre opressão, injustiça e a corrupção no Irã

Não Há Mal Algum

  • Quando Em exibição na 44ª Mostra de Cinema de SP a partir desta quinta (29). Exibido no Belas Artes Drive-In nesta sexta (30), às 18h40
  • Elenco Baran Rasoulof, Mohammad Seddighimehr e Zhila Shahi
  • Produção Irã/Alemanha/República Tcheca, 2020
  • Direção Mohammad Rasoulof
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