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'Sargento Getúlio', de João Ubaldo, faz 50 anos como sua obra suicidária

Dramatização do sertão sergipano pelo escritor é visceral, mortífera e anárquica, com a marca dos anos de chumbo

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Silviano Santiago

Crítico literário vencedor do prêmio Camões, é autor de "Uma Literatura nos Trópicos" e do romance "Machado", que ganhou o prêmio Jabuti de livro do ano

A prosa de ficção no Brasil só se torna escrita autossustentável —isto é, vital no além de sua contemporaneidade— se se apresenta ao leitor como inaugural ou como suicidária.

Obras inaugurais são, por exemplo, as "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Perto do Coração Selvagem". Entendamos por isso o livro que, ao ser lançado pelo autor, não encontra leitores preparados, seja pela tradição cultural em vigor, seja pelo gosto público dominante, para o receber com leitura e avaliação à altura.

O escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, em seu escritório no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro - Eder Chiodetto/Folhapress

Obras suicidárias são, por exemplo, o "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa , e "Sargento Getúlio", de João Ubaldo Ribeiro. É o livro que, ao ser lançado dentro de tendência então vitoriosa, caso do regionalismo nos anos 1930, questiona os princípios básicos que motivam a trama e justificam a retórica e o estilo defendidos pela escola.

O livro deixa na mão o leitor com água na boca. Ele trapaceia com os habitués e se torna uma espécie de objeto maldito, já que julgado, na boca pequena, como ilegível.

Se a prosa ficcional que se quer inaugural ou suicidária for potente, ela cria um leitor. Ele a acolhe por curiosidade, detecta a afinidade e segue o faro. O livro leva seu admirador a outros semelhantes que não circulam na tradição brasileira. Fascina o desdobramento do único em vários.

Não é cada um dos livros únicos que se torna escrita autossustentável de ficção. É a constelação gerada pelo romance inaugural ou suicidário. Ela passa a exigir um discurso crítico dos especialistas, que garante a ela lugar de destaque na história.

É o primeiro passo para que esta não se organize mais pela sucessão dos estilos-de-época. Os amadores tinham abandonado o campo do sensível e se amparam na linguagem crítica que libera a inteligibilidade da obra única em sua constelação. A nova metodologia passa a ter assento exclusivo nas cadeiras de letras dos cursos colegiais e universitários. Muitas vezes empurra o livro no estrangeiro.

A autossustentabilidade da prosa de "Sargento Getúlio" se faz evidente em edição que comemora o cinquentenário da publicação. Vida autossustentável e mais longa que a do autor.

A prosa inaugural e a suicidária são tão fraternas que permitem a transferência para o romance de Ubaldo das palavras que Antonio Candido escreveu ao acolher o romance de Clarice Lispector. Em texto de 1943, o crítico afirma que Lispector "procura criar um mundo partindo das suas próprias emoções, da sua própria capacidade de interpretação".

João Ubaldo também parte das suas próprias emoções, da sua c apacidade de interpretação para reinventar o mundo nordestino. Então defendida pelos bons "planejamentos desenvolvimentistas" da Sudene, afinados com as demandas do regionalismo literário dos anos 1930, a dramatização do sertão sergipano por "Sargento Getúlio" é visceral, mortífera e anárquica. Traz a marca dos anos de chumbo.

A paisagem sergipana é dominada pelas asas negras e os bicos famélicos dos urubus. A morte ronda o sertão. A paisagem nordestina está mais próxima de "Uma Carniça", poema de Charles Baudelaire, que das belas paisagens do engenho descritas por José Lins do Rego.

Eis uma estrofe do poema de Baudelaire, em tradução de Ivan Junqueira. "Por trás das rochas irrequieta, uma cadela/ Em nós fixava o olho zangado,/ Aguardando o momento de reaver àquela/ Náusea carniça o seu bocado."

Em "Sargento Getúlio", o urubu nos fixa com a fome atávica. Cito --"urubu é o asseio dos matos". E, logo adiante, "é o dono do mundo". "E pode esperar que o homem vai ser comido, numas beliscadas puxantes, aos arranques."

Da constelação de "Sargento Getúlio" fazem parte, entre outras obras, algumas xilogravuras de Emílio Goeldi e certamente a instalação "Bandeira Branca", de Nuno Ramos.

Nesta, construída na 29ª Bienal de São Paulo, o artista homenageia o mestre Goeldi com um gigantesco viveiro onde devem viver três urubus, vindos de Sergipe. João Ubaldo e Goeldi passaram ilesos pelas campanhas ecológicas a favor das aves. "Sargento Getúlio" --"nós temos nojo deles, e ele tem nojo de nós".

O artista plástico exibe a ave nua e crua, e em cativeiro. Um escândalo público e judicial. Nuno Ramos se explicou em longo ensaio escrito para este jornal. Talvez seja ele a melhor introdução do jovem à leitura de "Sargento Getúlio".

Da constelação de "Sargento Getúlio" fazem parte, entre outras obras, algumas xilogravuras de Emílio Goeldi e certamente a instalação "Bandeira Branca", de Nuno Ramos.​

Sargento Getúlio - Edição Especial de 50 Anos

  • Preço R$ 79,90 (144 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria João Ubaldo Ribeiro
  • Editora Alfaguara
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