Descrição de chapéu Folhajus lei rouanet

Incerteza paira sobre Lei Rouanet, com 'puxadinhos' e decretos um atrás do outro

Especialistas se dividem entre os que acham que inconstância na gestão é amadorismo e os que afirmam que é proposital

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Obra 'Zero Real', do artista Cildo Meireles Divulgação

Belo Horizonte

Pinacoteca, Masp, Museu de Arte Moderna, Teatro Oficina, Grupo Corpo, Museu do Futebol. Estas e mais tantas outras das mais importantes instituições culturais brasileiras não tiveram os seus planos anuais de manutenção, o que garante a cada uma delas a sua verba de funcionamento, aprovados para 2022 na Lei Rouanet.

O motivo, dizem especialistas, foi um decreto da gestão Mario Frias, que barrou da lei planos de orçamento anual que não fossem de museus públicos, patrimônio material e imaterial e ações formativas.

No apagar das luzes do ano passado, porém, veio um movimento aparentemente contraditório —a própria secretaria da Cultura orientou instituições a aproveitarem uma brecha na lei, conforme diversos gestores culturais disseram à reportagem, sob a condição de anonimato, com medo de represálias.

Com o ano fiscal chegando ao fim e muitos planos anuais atolados pelo decreto, a orientação do governo Bolsonaro foi de prorrogar os planos de 2021, esticando os prazos de captação para o fim de 2022 e subindo os valores totais de cada projeto. Com esse puxadinho, as instituições poderiam, portanto, captar recursos e manter suas atividades em 2022 —ainda que num clima de incerteza e de crescente insegurança jurídica.

"No fim, só planos anuais de museus públicos —que não são geridos por entidade privada—, projetos exclusivamente de preservação de patrimônio e ações formativas puderam apresentar planos anuais", diz a advogada especializada no setor cultural Aline Akemi Freitas.

"Companhias de dança, por exemplo, ficaram de fora. Praticamente todos os museus ficaram de fora, pois são raros os museus que sejam públicos, geridos pelo poder público e que possam usar o mecanismo de mecenato da lei de incentivo", diz a advogada.

O decreto de Frias ainda exige que as instituições sejam "exclusivamente culturais", o que atinge boa parte do setor. "Diversas instituições têm no seu cartão de CNPJ e também no estatuto algumas outras atividades, como educação e esporte", lembra Freitas.

Mas o tal decreto 10.755 abre uma conveniente exceção —podem ser autorizados os planos daquelas instituições que forem consideradas "relevantes para a cultura nacional" pela Secretaria Especial da Cultura do governo Bolsonaro.

"O decreto confere à Secretaria Especial da Cultura a prerrogativa de dizer quem pode ser beneficiado e quem não pode. É uma subjetividade que foge do compromisso que o poder público tem que ter de isonomia", diz Sydney Sanches, presidente da comissão nacional de direitos autorais da Ordem dos Advogados do Brasil, que também subscreve a ação da OAB sobre atos e omissões da gestão das políticas públicas do setor cultural e que tramita no Supremo Tribunal Federal sob a relatoria do ministro Edson Fachin.

Planos anuais são um importante mecanismo, para além de espetáculos pontuais, de preservação de instituições perenes, muitas delas pilares do setor cultural brasileiro.

"Quando você afeta os planos anuais, você dá um tiro bem certeiro num setor que emprega muita gente", diz Sanches. "A gente está falando de circulação de pensamento, do contraditório, de debate de ideias. Você tem um instrumento de poder muito grande na sua mão. E em determinado momento isso pode ter alguma serventia. Eu posso ter a prerrogativa de dirigir o recurso para quem me interessa politicamente."

Mas por que a mesma mão que bate afaga?

Nos bastidores, há quem diga que uma ação que tramita no STF pode ter pressionado a aprovação de planos às pressas, afinal um ano sem planos anuais de instituições importantes seria algo inédito. Porém, há quem interprete essa aparente contradição como fruto de amadorismo e falta de planejamento na secretaria de Frias.

Para além dos planos anuais, a persona de Frias nas redes sociais, junto a uma série de outras medidas que parecem ter sido pouco pensadas, alimentam a teoria de amadorismo. Mas há ainda quem veja tudo isso como um método de gestão, típica do bolsonarismo.

Os exemplos de falas e medidas que cheiram amadorismo não são poucos. Quando foi à 17ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza representar o país, o ex-"Malhação" revelou não saber quem foi Lina Bo Bardi, consagrada arquiteta que ganhou o Leão de Ouro pelos projetos que ela fez no Brasil.

Além do morde-assopra dos planos anuais, pelo menos duas pessoas que atuam como pareceristas da Lei Rouanet relataram à reportagem atrasos nos pagamentos pelos serviços e frequência irregular de demandas. No ano passado, mais de uma centena de pareceristas foram desligados de suas funções e alguns deles disseram que não receberam treinamento e não conseguiam entrar em contato com a secretaria, que, por sua vez, jamais enviou nenhum projeto sequer a essas pessoas.

Em meio a críticas de artistas de direita, como o cineasta Josias Teófilo, que dizia que o governo não estaria preparando nada para as comemorações do bicentenário da independência do Brasil, Mario Frias direcionou pelo menos R$ 3,4 milhões em verbas de seu próprio gabinete para ações em homenagem à data, como a criação de um "jogo didático" chamado "Perfil da Independência".

Frias autorizou R$ 321 mil, sem necessidade de contrapartida, para a produção do filme "A Jornada dos Príncipes", sobre a monarquia brasileira. O teaser publicado pela deputada Carla Zambelli chama atenção pela falta de sofisticação técnica e pela estética amadora.

Vale lembrar ainda o projeto Casinha Games, que destinou pelo menos R$ 4,6 milhões para um plano de capacitação na área de audiovisual, produção audiovisual, inclusão digital e retirada dos jovens em situação de vulnerabilidade da rua. O governo também não deu detalhes sobre o planejamento do Casinha Games.

O cenário pode ficar ainda mais asfixiante para boa parte do setor cultural. No início do ano, André Porciuncula, policial militar que comanda a Rouanet na gestão Frias, passou a anunciar uma série de mudanças na lei de incentivo à cultura.

O PM falou sobre o desejo de reduzir em 50% no teto da Rouanet, sem dar detalhes sobre quais critérios orientariam a suposta redução. Porciuncula também afirmou que pretende estabelecer um limite de R$ 3.000 para os cachês artísticos, além de diminuir em 83% o teto para gastos com publicidade pagos em projetos com recursos da lei.

Tudo isso foi anunciado por meio de postagens avulsas no Twitter do subordinado de Mario Frias. Não houve eventos, debates públicos, campanhas de divulgação ou cartilhas explicativas. E tudo isso alimenta ainda mais a questão —a aura de amadorismo e o clima de gambiarra são frutos de um despreparo dos chefes da Cultura ou fazem parte de um projeto de poder?

"Despreparo para quê? Podem ser preparados para outras coisas, preparados para o projeto [de esvaziamento da cultura]", diz Sanches. "Não é questão de despreparo, é questão de posição", completa.

Diante da subida ao poder de governantes de matizes semelhantes aos de Bolsonaro em diferentes partes do mundo, muito se fala em "engenheiro do caos", termo resgatado pelo italiano Giuliano Da Empoli. Estes seriam marqueteiros e estrategistas por trás de líderes como Matteo Salvini, Donald Trump, Jair Bolsonaro e Viktor Orbán, que entendem que "o populismo é filho do casamento entre a cólera e os algoritmos".

O professor João Cezar de Castro Rocha, autor de "Guerra Cultural e Retórica do Ódio" elogia o livro de Da Empoli, "Engenheiros do Caos", mas anuncia que está preparando outro volume para refutar alguns pontos da obra do italiano. A sua tese é a de que o caos é produzido nos dias de hoje, mas não da forma como Da Empoli propõe.

"O caos acontece não como método, mas como subproduto da guerra cultural", diz. "Nas minhas pesquisas, descobri que, no auge da Guerra Fria, a expressão ‘engenheiro do caos’ era usada de maneira abundante, foi fundamental no Brasil para o golpe militar. Na época, era usado por think-tanks de direita para se referir a comunistas."

Ele afirma que na época faria mais sentido usar essa expressão, porque de fato havia um partido comunista, o da União Soviética, que coordenava as ações do movimento comunista internacional, com exceção dos países alinhados à China.

"Quando você fala engenheiro do caos, a metáfora implica que existe uma planta, uma mente, uma centralização que irradia ações que produzem caos", diz Castro Rocha. "Hoje o caos é produzido porque ninguém mais tem controle sobre o excesso de estímulos produzidos. Não é que exista uma mente que esteja orquestrando o caos."

"A guerra cultural da extrema direita é um fenômeno transnacional e é o maior êxito do século 21, porque a guerra cultural levou a extrema direita ao poder através do voto", diz. A estratégia tem como base fake news, teorias conspiratórias e narrativas polarizadoras que mantêm as suas bases mobilizadas e em excitação permanente, afirma o professor.

Só que há aí um paradoxo fundamental. A guerra cultural é muito forte para chegar ao poder, mas impossibilita que haja um mínimo de estabilidade para que se produza propostas de governo, afirma o professor.

"Mario Frias e André Porciuncula não têm sequer capacidade de elaborar plano para produzir caos, por isso eles só podem insistir numa tola guerra cultural", completa o professor.

Já segundo Fábio Palácio, pesquisador em comunicação e professor da Universidade Federal do Maranhão, o clima de gambiarra é, sim, um método. "Se fosse só numa área, a gente poderia dizer que é casual, questão de incompetência", diz. "É um modus operandi que não está restrito à cultura."

Palácio justifica sua percepção com a crise na educação, que viu uma debandada de mais de uma centena de pesquisadores na Capes. Vale lembrar também o fato de não ter havido Censo, que deveria ter acontecido em 2020, mas até hoje não ocorreu.

"A comunidade artística sempre buscou mudanças na Lei Rouanet", diz Palácio. "Eles [governo Bolsonaro] estão pegando uma bandeira justa e casando isso com a mudança no perfil dos pareceristas, e paralisia da Cnic", diz Palácio, lembrando a comissão responsável pela aprovação de projetos na lei de incentivo, hoje suspensa. Mas no fundo, acrescenta o professor, o que eles querem são mudanças relacionadas à linha estética deles.

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